O texto a seguir contém spoilers sobre a trama do filme Perfume de Mulher.
O “Perfume de uma mulher”, como diz o original “Scent of a Woman”, mais do que uma fragrância, fala sobre uma marca, que torna uma pessoa única no mundo. Perfume de Mulher, um dos melhores trabalhos de Al Pacino como ator, constrói na relação entre seu ranzinza Frank Slade e o desabrochante Charlie Simms de Chris O’Donnell um ode à vida. Principalmente quando duas vidas se encontram para virarem mais do que a simples soma das duas.
O primeiro quadro do filme é da escola Baird, onde Charlie estuda. Nos primeiros segundos de película, nenhuma pessoa é registrada, apenas uma sequência de composições harmônicas e estáticas da instituição. Isso passa uma ideia de atemporalidade a Baird. Uma dissonância imediata se cria quando, ao soar do alarme, os alunos saem de suas aulas. Mesmo em seus trajes formais, a movimentação aleatória e as conversas em altas vozes não combinam com o ambiente apresentado. Isso torna o “concreto” ainda mais sisudo.
Uma das dinâmicas entre personagens mais consagradas do Cinema é a das duas pessoas que começam se odiando, até que o tempo faça crescer admiração e respeito mútuos. Perfume de Mulher guarda sua genialidade nos detalhes. Quando Charlie e Frank se conhecem, este coloca “Evangeline”, de Emmylou Harris, no seu toca-fitas. A canção fala de uma mulher que espera pelo seu amado, que nunca vai retornar. Quando o filme avança, percebemos que “Evangeline” é Frank, sendo sua “amada” o prazer em viver, algo que ele há muito perdera.
Outro foreshadowing contido na apresentação do Frank está na janela: em meio à escuridão de sua sala, a única luz – que pode ser interpretada simbolicamente como esclarecimento, bom senso e esperança – vem de fora. Frank não tem perspectivas para o futuro porque está contaminado pelas próprias convicções. Se há alguma chance, ela vem de fora, de Charlie.
Perfume de Mulher exemplifica o chamado “filme de atores”. Não há nenhum brilhantismo na direção de Martin Brest, compondo a maioria das cenas no formato plano-contraplano. O roteiro de Bo Goldman tem uma estrutura igualmente simples. Mas não há questionamentos sobre a veracidade dos protagonistas. Em primeiro lugar, porque Al Pacino conseguiu parecer mais cego do que um cego de verdade; em segundo, e injustamente ignorada, a atuação de Chris O’Donnell é repleta de tiques como olhos arregalados, olhares para o chão e sorrisos de constrangimento. Charlie é um garoto inocente, que não entende as nuances do poder e do dinheiro. Pacino, que polvilha sua atuação com expressões como “u-ha!”, “rá!” e “haha!”, passa um cinismo blasé para desdenhar de um mundo que ele considera ter lhe virado as costas.
A forma como Perfume de Mulher trata do suicídio é acadêmica: Frank deseja fazer uma “turnê de prazeres” por Nova York antes de desistir da vida. Com o desenrolar do filme, o público descobre porque Frank desistiu. Os parentes que considera primitivos, o irmão que o odeia, o passado que o atormenta. Albert Camus faz em O Mito de Sísifo uma jornada dialética para descobrir se o suicídio é uma solução plausível para o absurdo da vida. Frank fez a sua e concluiu que sim.
Cabe a Charlie provar que Frank está errado. E por que o jovem se sente obrigado a fazer isso? Pelo mesmo motivo que ele se mostra incapaz de delatar um bando de salafrários: porque é a coisa certa a se fazer. A “consciência do Charlie”, ridicularizada por Frank, é o que faz do jovem uma pessoa melhor do que o veterano. Mas também o faz por ver em Frank um futuro que poderia ser o seu, se algo lhe acontecesse. No fim das contas, os dois estão presos a um destino irrevogável. A menos que tomem uma atitude para mudá-lo.
A icônica cena do tango, por muitos lembrada apenas pela dança, mostra exatamente isso. Donna (Gabrielle Anwar) ser da mesma faixa etária de Charlie não é uma escolha aleatória. Quando ela sai do restaurante com seu namorado Michael (David Lansbury), deixando os dois para trás, está simbolicamente abrindo mão de seus sonhos, materializados pelo desejo de aprender tango, para desempenhar um papel que a sociedade espera dela. Ao sair com Michael para encontrar “Darryl e Carol”, Donna se torna a personagem com o destino mais trágico de Perfume de Mulher. Ela teve um vislumbre de liberdade no tango e em seguida é praticamente arrastada para longe dela.
Charlie e Frank só encontraram a salvação por se conectarem. Quando um verdadeiramente entendeu o outro, ambos perceberam que suas frustrações era reais, mas contornáveis. O que ambos precisavam – e toda pessoa com tendências suicidas precisa mais do que os outros – era de um motivo. E este motivo foi a amizade. Não por acaso, o último quadro de Perfume de Mulher é uma ponte. Apesar da absoluta falta de glamour, principalmente quando comparada à nababesca escola de Baird, uma ponte liga dois pontos. E a conexão entre dois amigos é muito mais interessante do que qualquer diploma.
Faça pontes. Não se isole. A vida é melhor quando compartilhada. Se você leu este texto e precisa de ajuda para lidar com um problema, o Centro de Valorização da Vida funciona 24h por dia. Falar é a melhor solução.
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