Lee Israel foi uma célebre biógrafa que, após alguns fracassos comerciais, tornou-se uma escritora esquecida, relegada ao esquecimento. Em certo ponto de sua vida, quando já entregue ao alcoolismo, sem amigos, família nem emprego, Lee viu na falsificação de cartas de antigos escritores a chance de recomeçar. O exercício era simples: Israel forjava conversas e as vendia para colecionadores de cartas. “Poderia Me Perdoar?”, filme de Marielle Heller, tenta recontar a história de Lee a partir de um recorte bem específico, que é justamente o do período em que a escritora começou seu trabalho como falsificadora.
Heller retrata uma personagem falha e frágil desde o princípio do longa. Com uma introdução que apresenta a personagem como figura de caráter rebelde, que rejeita as normas e convenções sociais mesmo em um ambiente profissional, “Poderia Me Perdoar?” estabelece um cenário que é sempre hostil para a protagonista. Afinal, por mais que a subversão defina a personalidade de Lee Israel, o mundo não se molda ao seu estilo.
É interessante a escolha de não conhecermos Lee em sua juventude, nem durante seu auge profissional. Com o recorte partindo justamente do fundo do poço no qual a personagem se encontrava enquanto se preparava para escrever sua próxima biografia – a de Fanny Brice –, “Poderia Me Perdoar?” abre mão da estrutura cinebiográfica comum e aposta em um drama mais fechado e intimista. Em vez de uma trama no formato básico de ascensão e queda, temos um filme que tenta criar um perfil para Lee Israel ao observar sua rotina e seus momentos de dor. Não há, porém, uma defesa de seus atos criminosos, o olhar lançado por Heller denota leveza e ausência de julgamento.
Julgamentos – ou a ausência deles –, aliás, são um elemento forte em “Poderia Me Perdoar?”. A ideia de Heller parece ser evitar uma avaliação dos feitos de sua protagonista e também evitar dar muita atenção ao processo jurídico originado pela investigação de suas farsas. O único julgamento que importa, no fim das contas, é o realizado pela própria protagonista, em um momento de auto-reflexão.
Visualmente, Heller e seu diretor de fotografia, Brandon Trost, optam por construir um cenário sufocante para Lee Israel. O quarto da protagonista, por exemplo, é visto por apenas um ângulo, que por ser fechado na cama da personagem, nos dá a sensação de que se trata de um espaço apertado e desconfortável. Quase todos os cenários da obra alternam entre duas chaves, a fria e cinzenta paleta de cores digna do inverno novaiorquino e cenários mais escuros e dominados por tons terrosos. Por boa parte da obra há, também, uma escolha por não utilizar luz de preenchimento, o que faz com que diversas vezes os personagens sejam fotografados com partes do corpo ocultas pelas sombras – bem como o cenário, que muitas vezes também tem pouca luz. Como resultado dessas escolhas, Lee Israel parece alternar entre a frieza de um mundo que ignora sua existência e a claustrofobia de ambientes cavernosos, fechados e isolados.
Uma indecisão quanto à abordagem parece impedir que “Poderia Me Perdoar?” avance em qualquer um dos gêneros. Se por um lado, o humor acaba sendo um alívio não tão comum ao longo da narrativa – é um dispositivo acionado quase sempre pela presença de Jack Hock (Richard E. Grant), único amigo de Lee –, por outro, o drama também nunca é aprofundado. Por pegarmos a história de Lee já em andamento, há ausência de material que nos faça compreender devidamente a trajetória da personagem. Os relacionamentos passados, por exemplo, parecem ditar o ritmo do mundo de Lee, mas a personagem raramente aborda o assunto e a obra também não busca expor para o público o que aconteceu no passado da biografada.
O elemento que melhor funciona mesmo é a relação de Lee com suas falsificações. Ao utilizar a primeira parte do filme inteira para estabelecer o cenário psicológico e profissional no qual a escritora se encontra, todo o resto surge de forma natural. Quando ouvimos que Lee se tornou tão especialista na vida dos outros que acabou perdendo a chance de criar uma figura pública para si mesma – e assim ter mais facilidades profissionais –, o roteiro nos dá o caminho perfeito para compreendermos porque Lee obteve tanto sucesso ao falsificar cartas de escritores famosos.
É elogiável ainda que Heller consiga transformar a peculiar história de Lee em uma busca de identidade. Poucas coisas poderiam ser mais irônicas do que uma personagem como Lee, que por ter se tornado mestre no estudo de outros escritores, acabou por encontrar-se justamente quando se passa por eles. “Poderia Me Perdoar?” assume o olhar de sua protagonista e vê seus plágios como, apesar de crimes dignos de punição, um suspiro de alegria na vida de uma pessoa tão perseguida por problemas. Mesmo que pouco convidativa por não nos contar o suficiente sobre o histórico de sua protagonista, “Poderia Me Perdoar?” é uma biografia interessante sobre uma figura que, ciente de seus defeitos, fez deles um meio para sobreviver.