Em Nerve, o último trabalho da dupla de diretores Henry Joost e Ariel Schulman, já era possível identificar uma falta de criatividade na caracterização do universo, apesar de ambos terem estreado no bom documentário Catfish. Não é muito diferente o que acontece agora com Power, que é mais um trabalho visualmente desinteressante e, se pensarmos bem, não tem uma temática tão diferente desses outros dois longas citados. Em Catfish, a criação de fakes na internet era uma forma de criar uma nova identidade. Já em Nerve, a busca pela fama através de desafios transmitidos pela internet fazia com que adolescentes fingissem ser aquilo que não eram. Agora, neste novo longa distribuído pela Netflix, as drogas são o que movem os seus personagens, que, com os poderes gerados por ela, buscam ser algo a mais.
Diferente de uma droga normal, a Power dá poderes específicos para cada pessoa. As habilidades vão desde se transformar em um ser de fogo, ficar invisível, virar um monstro gigante até ser imune a tiros. Como seus efeitos contêm uma curta duração de cinco minutos, muitos se tornam adictos deste produto. Apresentado o conceito deste universo, a história se passa em Nova Orleans, cruzando as jornadas de Art (Jamie Foxx), um impiedoso homem que busca sua filha; o policial Frank (Joseph Gordon-Levitt), que faz uso da droga para melhorar sua performance; e a adolescente Robin (Dominique Fishback), que se torna o ponto de comunicação entre ambos os homens.
Neste sentido, Power acaba sendo dois filmes ao mesmo tempo. Primeiramente, um que se interessa minimamente por uma exploração de uma Nova Orleans periférica, tentando se aprofundar em questões socioeconômicas e raciais. Assim, a narrativa passa desde ambientes noturnos, que vão de vielas desertas a parque de diversões abandonados, a complexos de apartamento pichados e super mercados populares, fazendo desta região o núcleo de boa parte dos acontecimentos da trama. Porém, o já conhecido uso do neon (desta vez, vermelho) pela dupla Joost-Schulman se mostra uma redundância um tanto quanto cafona e exagerada para ressaltar a decadência daqueles lugares — e também servindo como exemplo prático de que não necessariamente ter um traço autoral está relacionado a um elemento positivo.
Ainda neste aspecto, Robin é desenvolvida dramaticamente como forma de falar de uma realidade periférica de modo geral. A evasão escolar em direção ao mundo das drogas, a ambição em largar a educação formal para ser rapper se somam as dificuldades enfrentadas de ser filha de uma mãe solteira. No entanto, conforme a narrativa vai se encaminhando para o fim, todo esse lado vai sendo cada vez mais deixado em segundo plano, reduzindo a complexidade social de Robin a um jogo de toma-lá-da-cá entre os personagens de Fox e Gordon-Levitt, que passam a brigar pela função de figura paterna da garota. Além do mais, não deixa de ser contraditória a relação entre ela e este segundo em um filme que tenta ser socialmente engajado, uma vez que a maior preocupação parece ser em evidenciar o bom-mocismo deste policial no meio de um sistema podre ao invés de realmente tocar em pontos da brutalidade ou do racismo em toda a estrutura da polícia.
Por outro lado, Power vai cada vez mais ganhando a forma de exercício genérico de ação e fantasia, assemelhando-se a um piloto estendido de uma dessas séries de super-heróis que saíram nos últimos anos. A predominância de sequências em slow-motion e uma decupagem que parece esconder a ação (uma certa cena filmada pelo lado de dentro de um vidro embaçado é um exemplo) em nenhum momento justificam sua função narrativa e mais parecem artifícios para mascarar uma falta de criatividade ou apenas um mau-gosto por parte dos diretores. Contudo, não sendo injusto com a dupla Joost-Schulman, o excesso de violência gráfica consegue sair da sombra de ser apenas parte dessa onda “quero ser John Wick” (até porque não há a busca por uma coreografia estilizada, com uma decupagem de mais cortes) e se mostra como parte integrante deste universo mais cru que é apresentado do subúrbio de Nova Orleans.
Todavia, contrariamente a este lado mais social e até verossímil do universo diegético (ainda que marcado por essa estilização neon e os super-poderes), os vilões vão para um lado estereotipado (que fique claro que não há nenhum problema nisso, a priori) do traficante latino (ah, Rodrigo Santoro..), do capanga russo e da cientista mulher louca que marcam produções desse gênero. No início de Power, o primeiro confronto com um “mutante” é em um complexo de apartamentos, no qual a precariedade do lugar e a própria condição de viciado (humanizando a figura, fazendo com que ele seja menos um vilão) são partes integrantes do confronto, parecendo levar a crer que o rumo será uma abordagem que mostre como a droga está destruindo a vida das pessoas mais humildes. Só que conforme a trama progride, os cenários vão ficando cada vez mais genéricos (subsolo, doca e navio) e marcados por capangas altamente descartáveis que serão executados e a luta caíra na dicotomia do bem vs. mal. Por que não fazer isso desde o princípio, então, ao invés de simular um nível de engajamento que nunca sobrevive a segunda metade do longa? O pior ainda é que na cena mais explícita sobre racismo (quando Gordon-Levitt surge de toalha na casa de Robin), há um humor predominante que destoa completamente do tom geral da narrativa.
No fim, o resultado de Power acaba sendo essa grande salada. Uma tentativa de estabelecer um universo que dá brechas para continuações, mas que jamais se torna atraente; uma jornada de aprendizado entre “pai-e-filha”, talvez o que seja o ponto mais honesto do filme; um veículo de ação violenta, mas que não consegue se destacar para além do genérico, e um olhar sobre o subúrbio de Nova Orleans, que nunca consegue ir além de uma primeira camada superficial.