Plano Aberto

Promessa ao Amanhecer

É curioso como o senso comum iguala antagonistas a vilões. Enquanto público, somos “ensinados” a associar a oposição ao confronto de ideias excludentes, onde uma precisa “vencer” a outra. “Promessa ao Amanhecer”, de Eric Barbier, constrói sua história de forma atraente ao fugir deste senso comum. O antagonismo, forte como poucos filmes recentes conseguiram construir, não vem de um vilão. Muito pelo contrário.

“Promessa ao Amanhecer” tem momentos de mudança bem definidos como este, em que Romain descobre qual é a “sua” missão na vida

Robert McKee, no excelente “Story: Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro”, diz que personagens se revelam humanos nas escolhas feitas sob pressão. “Quanto maior a pressão, mais profunda é a revelação”. E o pequeno Romain Kacew (nesta fase interpretado pelo jovem e talentoso Pawel Puchalski) é colocado sob pressão desde a mais tenra idade por ninguém menos que sua mãe Nina (a mastodôntica Charlotte Gainsbourg). E essa pressão, que o obriga a fazer escolhas, revela a verdadeira natureza de Romain, que viria a ser um dos maiores nomes da Literatura Francesa (já como Romain Gary).

A história de “Promessa ao Amanhecer” é uma adaptação do romance autobiográfico de mesmo nome, e assim é contada ao público: é a esposa de Romain, Lesley Blanch (Catherine McCormack) quem o lê pela primeira vez. Durante as festividades do Día de los Muertos, Gary exige que Blanch o leve até a Cidade do México “para morrer”. Seu livro é tratado como um “testamento”, uma prestação de contas àquela que esperou e exigiu tudo no que ele se tornou: sua mãe. Essa sobreposição de presente e passado mostra os dois extremos da vida de Romain: o artista excêntrico, dramático, quase louco, e a criança de inocência quebrada, que cedo demais é exposta às adversidades da pobreza e do preconceito. Dentro de casa, o amor da mãe vem junto com a pressão de ser o maior homem que já viveu. Não para o mundo, mas para ela.

“Você será Victor Hugo”. Essa não é um incentivo, mas uma exigência. Mesmo o olhar do autor de “Os Miseráveis” não é de quem guia, mas de quem cobra. A sobreposição dos dois indica um desconforto proveniente da insegurança.

Nina, de forma clara e surpreendente, se ajusta à estrutura narrativa como antagonista porque, além de pressionar Romain a fazer escolhas difíceis, também o ataca em suas fraquezas. Numa cena, o questiona sobre não ter sido publicado no jornal, forçando-o a mentir que fora, mas sob um pseudônimo. Momentos como esse mostram quem realmente é Romain: um homem capaz de viver uma vida de mentiras, se isso fizer sua mãe orgulhosa dele. A cada virada de ato, o roteiro aperta mais um parafuso nessa engrenagem, aumentando no espectador o seu interesse pela história. Até onde ele será capaz de ir para se tornar digno da mãe? Essa “competição” dos dois pelo sucesso de Romain, para Nina uma mera formalidade e para Romain uma bússola moral, leva o protagonista a todos os seus principais feitos. É pela existência da antagonista que o protagonista cresce e se torna sábio, comprometido e vitorioso na sua “jornada”. A questão não está no quê, mas no porquê.

Reflexo da influência da mãe, todas as outras mulheres que cruzam a vida de Romain em “Promessa ao Amanhecer” parecem frutos proibidos: perfeitas, tentadoras, efêmeras e traumáticas

Esses conflitos entre desejos e necessidades da dupla são reforçados na fotografia: Nina sempre aparece em uma posição dominante sobre Romain, seja por “espremer” o filho no quadro ou por mudar a angulação da câmera (quase sempre, ela é filmada de baixo para cima, criando uma sensação de subjugo). O estado de espírito de Romain passa pelo equilíbrio de cores, com um alaranjado febril no México, cinzas pálidos na Polônia, amarelos acolhedores em Nice e terrosos opacos durante a Segunda Guerra. Mais do que a receptividade de cada ambiente, sabemos a percepção do protagonista sobre isso.

A chegada dos Kacew a Nice

Algo reforçado pelas atuações. Os três Romains (além do pequeno Puchalski, ele é interpretado por Némo Schiffman na adolescência e por Pierre Niney na fase adulta) demonstram evolução e coerência, sendo fases de uma mesma pessoa. E o trabalho de Gainsbourg, flutuando entre a idolatria e a egolatria, a força e a fraqueza, a sobriedade e a explosão, torna difícil encaixar sua Nina em um padrão. Ela não é Leopold Mozart, tampouco Joe Jackson ou a clichê Erica Sayers de “Cisne Negro”. Seu papel em “Promessa ao Amanhecer” é o de mãe, que ama e incentiva seu filho da melhor forma que pode (a única que sabe). Que deseja o mundo para sua prole, embora esse exato desejo acabe sendo responsável pela maior limitação que uma pessoa pode sofrer de outra.

Algo que você, lendo esta crítica, certamente conseguirá relacionar a pelo menos um evento da relação que tem ou teve com sua própria mãe.

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