Justine é uma jovem francesa recém matriculada no curso de medicina veterinária. Na primeira semana de trote, é sujeitada a comer o fígado de um coelho. A menina, porém, é vegetariana, e a partir do ocorrido passa a experienciar mudanças em seu corpo e mente, despertando um incontrolável desejo canibal. Inicialmente, Justine é sempre colocada como alguém frágil num ambiente hostil. Desde o primeiro dia de trote até as primeiras provas, a personagem é constantemente  filmada no plongée com muitos ângulos abertos. A atuação de Garance Marillier é competente por mostrar a evolução de menina frágil para monstro, utilizando desde a curvatura do corpo até a firmeza no timbre de voz e sorrisos ora tímidos ora maliciosos.

O filme possui alguns problemas estruturais que não prejudicam tanto o resultado final, mas que atrasam o desenvolvimento narrativo. Há uma enorme demora para Raw encontrar seu primeiro ponto de virada e, quando encontra, demora para vermos os efeitos do acontecimento. Apesar disso, a segunda metade do filme tem um desenvolvimento bem estruturado graças à boa organização de acontecimentos, que tornam-se mais graves e conduzem bem o filme ao seu clímax. A trilha sonora é a maior responsável pelo impacto dramático do filme. Apesar de Raw abusar do gore para chocar, com muitos planos detalhe que focam em sangue e feridas, a direção de Julia Ducournau só funciona nessas partes quando apoiada pela música, que, lembrando até o recente Demônio de Neon, assusta pelo surgimento repentino e intensidade, mesmo com arranjos modernos e mais “eletrônicos”.

A metáfora clara da mudança na vida adolescente é, mesmo que óbvia, bem cimentada. Não é, porém, bem aprofundada, não trazendo nenhuma boa relação com a conclusão do filme. É possível se ater mais à ideia de que o canibalismo de Justine é uma resposta à agressividade das pessoas com sua pessoa. Raw acaba servindo mais como uma exposição de alegorias do que como uma trama que desenvolve e aprofunda o tema. Esta segunda visão é fortalecida se observarmos que boa parte dos atos canibais de Justine ocorrem quando a protagonista está sendo coagida ou ameaçada, como na cena da cera e da “tinta”.  O canibalismo, portanto, seria um mecanismo de defesa da personagem. Apesar de funcionar ao longo da narrativa, essa ideia também não acha coesão com a conclusão de Raw.

Os relacionamentos de Justine não são bem aprofundados. Seus pais só aparecem em três momentos, apesar de terem enorme importância no fim do longa. Sua irmã funciona como a guia da personagem e seu colega de quarto Adrien, é eficiente ao expor o desejo da protagonista. Todos os personagens, aliás, funcionam como ferramentas narrativas para a evolução da principal. Criando uma atmosfera tensa e fazendo bom uso do gore, Raw não é tão pesado quanto o marketing feito no Festival de Toronto prometia, mas é perturbador e bem executado. Incômodo visualmente e bem construído narrativamente, o filme é apenas um pouco disperso em suas metáforas. A cena final, mesmo sendo interessante e satisfatória, não amarra bem as ideias do filme. Num ano especial para o gênero, Raw é mais uma grata surpresa e, depois de A Bruxa, é o mais interessante filme de terror de 2016.