Não compartilho da visão pretensamente neutra dos que dizem que arte e política não se misturam. A arte, assim como qualquer atividade humana, é um ato político. E Real – O Plano Por Trás da História, filme do carioca Rodrigo Bittencourt, não poderia ser mais político. Só que, de tão preocupado em revisar a História do Brasil para transformar em fato sua percepção sobre uma das épocas mais importantes no passado recente do país, se esqueceu de compor uma trama com o mínimo de coerência.
O roteiro é “livremente adaptado” do livro 3000 dias no bunker – um plano na cabeça e um país na mão, do também carioca Guilherme Fiuza, que talvez seja lembrado por Meu nome não é Johnny, adaptado para o cinema por Mauro Lima em 2011. Mas também são dele Não é a mamãe – para entender a era Dilma e, numa referência desagradável ao sensível Que horas ela volta?, o Que horas ela vai? O diário da agonia de Dilma. Some-se à “bibliografia” o fato do projeto ser patrocinado por dois bancos (a saber: Itaú e Safra) e me permito questionar se Real é mesmo um filme histórico minimamente isento ou um panfleto ideológico descartável, produto da atual conjuntura política do país.
Essa sensação de se estar assistindo a um Triunfo da Vontade – piorado – desperta logo na sequência inicial do filme, quando um jogral que mistura notícias reais com reinterpretações conta – em menos de um minuto – o que aconteceu com o Brasil entre a posse de José Sarney em 1985 e o impeachment de Fernando Collor em 1992. É uma contextualização que mais confunde do que elucida, pois dispara informações ininterruptamente como a metralhadora do Rambo dispara balas, sem dar o mínimo respiro para que o espectador assimile o que está vendo. A mensagem transmitida atabalhoadamente é de que, após sete anos de caos absoluto, um presidente foi deposto e um “governo tampão” tem a chance de salvar o Brasil, livre das amarras da politicagem.
É impossível assistir a Real ignorando o que se passa no Brasil em 2017. Uma presidenta deposta do cargo, um governo tampão que se coloca no papel de salvador do país, caos econômico e perda de credibilidade nas instituições públicas. O filme faz uma analogia simplista de que o momento retratado é, em certo nível, comparável ao atual. Ignora o contexto histórico, as pessoas envolvidas e os objetivos por trás do “bunker” onde o Plano Real foi idealizado. Se, em 1993, a força-tarefa montada pelo ministro Fernando Henrique Cardoso buscava acabar com a inflação e salvar a democracia restaurada há menos de dez anos, o clima atual é de “salve-se quem puder”, com novas denúncias de corrupção abalando todas as esferas do governo de Michel Temer.
Claramente o protagonista do filme de Bittencourt, Gustavo Franco (Emilio Orciollo Netto, que praticamente carrega o longa nas costas) não causa a menor empatia no público. O roteiro pobre de Mikael de Albuquerque constrói um personagem autossuficiente, arrogante, preconceituoso e vitimista. Quando demitido do cargo de professor da PUC-Rio, acusou “comunistas infiltrados” por “sabotarem” seu magistério. Motivo da demissão: reprovou todos os alunos de sua turma que não concordavam ideologicamente com ele. Sem nenhuma profundidade dramática, Franco é pintado como uma locomotiva: intransigente e senhor de uma pretensa verdade absoluta.
Este é o principal problema de Real: determinar que existem “verdades” quando se trata de Economia. Diferente de campos como a Genética ou a Física, a Economia é uma ciência humana: ela existe para analisar uma criação social, que não se replica na natureza e, portanto, está diretamente ligada à forma como a sociedade a encara. Em um dos grandes momentos de tensão do longa, Gustavo se vê acuado para desfazer a paridade cambial do Real frente ao Dólar, mas se nega sob argumentos de que “não vão desvalorizar a minha moeda”. Em troca, sugere o aumento de 20 pontos percentuais na taxa básica de juros, aumentando-a de 25% para 45%. Conversei sobre o assunto com um mestre em Economia, que me disse categoricamente: “depende do que você precisa. O remédio neoclássico para controlar a inflação é aumentar juros, o que funciona em inflações de demanda. Mas se a inflação for de custos, só agrava a situação!”
Não defendo que um filme sobre Economia só possa ser compreendido por profissionais da área, mas acho um atestado de incompetência que tal obra não consiga se fazer entender pelos códigos técnicos (o último exemplo brilhante de um filme sobre Economia amplamente acessível para leigos foi A Grande Aposta). Bittencourt cria uma narrativa fantástica de “um homem, um sonho e um objetivo” para embarcar o espectador nesta cruzada contra a desvalorização de uma moeda sem explicar quais as consequências diretas desta birra. Como minha “fonte econômica” bem lembrou, “o Ien (moeda do Japão) vale dois centavos de Dólar e ninguém questiona se a economia japonesa é mais fraca do que a brasileira por isso”.
Além de injustiças históricas, como a ausência de figuras como Ciro Gomes, ministro da Economia que coordenou a implementação do Plano Real, o filme pinta outras, principalmente o ex-presidente Itamar Franco (Bemvindo Sequeira) e o sucessor de FHC no ministério Rubens Ricupero (Ricardo Kosovski), como duas bolhas acéfalas, incapazes de compreender o que era o Plano. Real vende uma ideia de que existem duas Economias, a “certa” e a “errada”, estando ali aqueles homens para fazer a “certa”, não importando as consequências de seus atos. Acima de todos está Gustavo, o único com olhos em uma suposta terra de cegos. O cenário de ebulição social do período é pintado de forma difusa, caricaturada, como não fosse importante.
Intercalando os acontecimentos de quando Franco era homem forte da economia brasileira, uma entrevista é conduzida pela jornalista Valéria (Cássia Kis), numa paródia risível do excelente Frost/Nixon. Se Ron Howard desconstrói o mais polêmico dos presidentes dos Estados Unidos, mostrando uma figura cansada e vulnerável, Bittencourt usa um momento de revelação, com Gustavo sendo investigado pela CPI do Banestado por ter facilitado evasão ilegal de divisas, para lhe dar a oportunidade de mais um rompante de arrogância. Se a intenção era criar um herói, Real fracassa miseravelmente, pois é impossível torcer por um personagem tão desagradável, além de possessivo e machista (sua esposa fictícia vivida por Paolla Oliveira não passa de um objeto para ele, que a descarta e a chama de volta quando lhe é conveniente).
Com aspectos técnicos sofríveis, como a fotografia de tons amarelados para dar ao passado um tom documental e azuis representando certa melancolia no presente, além de enquadramentos típicos de televisão, com planos fechados e montagem picotada, Real não é um filme histórico, mas uma tentativa de reescrever a própria História. A fala em tom profético de Gustavo durante seu depoimento à CPI, onde diz que o recém-eleito Lula “deve tomar cuidado, ou nós vamos ter que voltar pra consertar o que ele estragar”, dialoga diretamente com o impeachment de 2016 e o legitima, sem questionamentos críticos. Todo artista tem direito a expressar opiniões em suas obras, mas dar a elas o verniz da neutralidade denota falta de coragem ou de respeito à capacidade intelectual do público. Fica a critério de quem for aos cinemas descobrir o que é Real. Um bom filme, certamente não é.