O western é um espaço cinematográfico privilegiado para a ambiguidade. Dos clássicos de John Ford e Howard Hawks à desconstrução eastwoodiana, o gênero é povoado por personagens fascinantes em seu deslocamento social e amoralidade, elementos que tendem a levantar questões interessantes a respeito da sociedade americana. Daí ser tão insípido o olhar do britânico Paul Greengrass em Relatos do Mundo, pois lavado pelo bom mocismo típico de Tom Hanks.
O filme faz escolhas deploráveis nesse sentido, já que muito limitadoras da complexidade potencializada pelo gênero. O protagonista, Capitão Jefferson Kyle Kidd (Hanks), é um ex-militar do exército confederado, texano, que, em 1870, trafega pelo sul dos Estados Unidos lendo notícias de jornal para um público iletrado. Apesar dessa identidade sulista atravessada por uma guerra terrível em que o lado no qual lutou defendia a manutenção da escravidão, o personagem é tratado como uma espécie de pacificador, portador implícito dos valores defendidos por Abraham Lincoln – o presidente detestado naquela parte do país, considerado o causador de um conflito sangrento e assassinado por isso.
Mas constrangedor mesmo é o segmento em que Capitão Kidd e a garota Johanna (Helena Zengel) vão parar numa cidade controlada por um tirano personalista (Thomas Francis Murphy). Ali, o protagonista, até então adepto de algum pragmatismo para sobreviver num mundo violento, repentinamente assume uma postura corajosa e consegue instigar, em poucos minutos, a revolta dos habitantes locais contra seu governante autoritário. Há tempo inclusive para a defesa da democracia como sistema decisório, numa dessas escolhas reveladoras da incapacidade de um certo cinema americano contemporâneo, preocupado excessivamente com a associação a valores progressistas e com a crítica irresistível ao governo Trump, de entender a complexidade de outros contextos e a ambiguidade como uma possibilidade artisticamente interessante.
Além disso tudo, Greengrass demonstra uma impressionante falta de talento para criar imagens minimamente memoráveis, dentro de um gênero historicamente constituído por elas. Não há qualquer inventividade visual em Relatos do Mundo, nem mesmo resquícios do que foi o cinema do diretor num passado recente – mas que já parece muito distante depois de Zona Verde (2010), Capitão Phillips (2013), Jason Bourne (2016) e 22 de Julho (2018), filmes no máximo medíocres. Talvez a estética da hiperfragmentação que tornou Greengrass popular nos anos 2000 não caísse muito bem num western com alguma pretensão classicista, mas ao menos restaria intacta alguma identidade visual própria.
Por fim, vale dizer que a comparação com Central do Brasil (1998), que muitos vêm fazendo, não é totalmente adequada. Tampouco justa. Tudo bem, o mote do sujeito solitário letrado que oferece seus serviços a iletrados e que estabelece relação paternal com uma criança órfã lembra o do filme de Walter Salles. Mas a protagonista desse último é uma mulher amoral, autora de atos deploráveis jamais escondidos pela narrativa, e que só ao longo do tempo adquire alguma dignidade. Personagem, portanto, bem mais interessante que o de Hanks, já que portadora da tal dubiedade tão evitada pelo ator e por Greengrass. Sem contar que, como “cinema de lágrimas”, Relatos do Mundo está a quilômetros da precisão milimétrica de Central do Brasil.