No ensaio fílmico Arbeiter Verlassen die Fabrik (1995), o cineasta alemão Harun Farocki discute como o cinema repetidamente revisitou A Saída dos Operários da Fábrica (1895), de Louis Lumière, um dos primeiros filmes da história, emulando sua mise-en-scène: câmera posicionada em frente aos portões da fábrica, operários se deslocando em conjunto para fora do ambiente de trabalho, concretizando em imagens em movimento a ideia de uma classe social. Responsabilidade Empresarial, do argentino Jonathan Perel, também é constituído de cenas desse tipo. Mas sem a presença dos trabalhadores.
É que o filme de Perel trata da aliança entre empresários e agentes de segurança durante a última ditadura militar argentina (1976-1983), visando a perseguir operários politicamente ativos, principalmente aqueles ligados a sindicatos combativos. Vários deles foram demitidos, presos, torturados, desaparecidos ou assassinados no período, com colaboração direta das empresas em que trabalhavam – essas, por sua vez, aumentaram a jornada de trabalho e reduziram os gastos com a mão-de-obra, se beneficiando economicamente do novo momento político sem precisar temer qualquer reação dos subordinados, então acuados. O diretor estaciona seu carro na frente delas e filma suas fachadas enquanto lê relatos da perseguição que ajudaram a empreender. Os corpos desses trabalhadores, constrangidos, violentados, por vezes exterminados, estão, portanto, ausentes das imagens que compõem Responsabilidade Empresarial.
Os prédios das fábricas, por sua vez, assomam no quadro como presenças assustadoras, fantasmagóricas, monstros devoradores de gente, distantes, mas à espreita. Perel se aproxima aqui mais de Claude Lanzmann, no momento do magnífico Shoah (1985) dedicado às empresas alemãs que contribuíram para o funcionamento da máquina de destruição nazista, do que de um documentário como Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski, sobre o engajamento do empresário dinamarquês Henning Boilesen no financiamento da ditadura militar brasileira. Enquanto esse último tem um formato mais convencional, de junção de “cabeças falantes” com imagens de arquivo ilustrativas, Responsabilidade Empresarial aposta numa construção mais rigorosa, em que a observação lenta e insistente dos espaços produz sentidos discursivos sobre o horror.
De toda forma, são três filmes que, por caminhos distintos, revelam a associação intrínseca entre o capital e o autoritarismo produzindo a eliminação pura e simples de pessoas consideradas indesejadas. Desconstroem, assim, narrativas memoriais das elites econômicas desses países, que buscam se descolar de realidades passadas que ajudaram a criar. Nos casos de Cidadão Boilesen e Responsabilidade Empresarial, corroboram interpretações historiográficas recentes dessas ditaduras como “civis-militares” ou “empresariais-militares”, responsabilizando setores mais amplos da sociedade pelos crimes cometidos.
E por mais controversas que sejam tais definições (há todo um debate entre historiadores a respeito, que busca considerar, por exemplo, o predomínio decisório dos militares nesses regimes, mesmo que associados a interesses econômicos da burguesia), os dois filmes se mostram bastante eficazes na produção de olhares indignados sobre uma aliança de efeitos tão devastadores. Ao filmar os prédios das fábricas de pé, a maioria em pleno funcionamento, enquanto a voz em off de Perel lê relatos de práticas e nomes de ex-funcionários desaparecidos, Responsabilidade Empresarial cria momentos muito fortes de revelação de um poder perene, que se serve dos governos de ocasião e sobrevive impune a eles.