Resumir a experiência com um filme (ou melhor, uma obra de arte) a partir da dicotomia “bom” e “ruim” me traz vários questionamentos. Afinal, olhando-se a partir de uma metodologia finalista, qual a finalidade de uma obra de arte? Se aceitamos a dicotomia dita acima, sua finalidade é ser “boa”? Se sim, o que faz um filme ser bom e quais os critérios para isso? Evidentemente que o que é bom para uma pessoa, não necessariamente é para outra, então se está no campo do subjetivo. Um filme bom seria aquele que preenche a alma (mas o que preenche?)? Que traz felicidade ao espectador (o que é felicidade?)? Que traz alguma transformação (uma obra de arte realmente consegue transformar alguém)? Que traz alguma reflexão interna ou sobre a sociedade? Que provoca alguma sensação física, como a catarse, um arrepio na nuca ou o arranca de lágrimas? Começo o texto com todas essas provocações justamente porque, após assistir Salve o Cinema (Salam Cinema, no original), do iraniano Mohsen Makhmalbaf, foi muito difícil (e está até agora, já dias depois) dizer se eu gostei ou não do mesmo, ou se sequer faz sentido tentar encaixá-lo dentro dessa dicotomia.
Contextualizando a obra de 1995, trata-se de um filme, que assume aparências de ser documental — mas não se há tanta certeza se ele é ou não (nem informações o suficiente na internet sobre isso). Sua narrativa envolve o processo de escolha de elenco para um filme no Irã, que será dirigido pelo próprio Makhmalbaf. Após a divulgação de panfletos avisando sobre os testes, aparecem milhares de pessoas amontoadas em fila esperando para serem chamadas. Porém, a conta não fecha: há mais pessoas que panfletos. Quando os papéis começam a ser distribuídos, um caos começa: brigas, empurra-empurra, pessoas pisoteadas e algumas precisam até ser carregadas. As cenas são quase como as de um “apocalipse zumbi”. Um bando de “zé ninguém” lutando pela oportunidade de serem “alguém” — movie stars. Após este “prólogo”, o restante do longa se passa na sala de audiência, onde o diretor Makhmalbaf passa a entrevistar diferentes candidatos, humilhando-lhes, fazendo-lhes pedidos, ora provocadores ora abusivos, gerando bastante constrangimento. Tudo isso para que eles sejam escolhidos para o papel.
Os primeiros sentimentos que passaram pela minha cabeça (ainda durante o filme) foram de repulsa e indignação, ao ver aquelas correndo riscos físicos em numa espécie de selva do ‘cada um por si’, tudo isso proporcionado pela chamada de teste de elenco e a má gestão da situação. Importante dizer que, neste momento inicial, eu estou considerando Salve o Cinema como um documentário, então pressuponho que tais cenas caóticas são reais. A partir daí, faço diversas indagações. Primeiramente: eu estou indignado com o filme em questão ou com a atitude do diretor Mohsen Makhmalbaf? Afinal, é possível fazer uma separação entre os dois? É possível reconhecer que, ainda que Mohsen tenha causado diretamente lesões corporais e humilhações morais em diversas pessoas, isso não interfere no filme? Ou, por outro lado, se a própria razão de existir do filme tem seu núcleo neste anúncio de testes absurdo, não há como separar tais questões?
Tal situação me traz à memória o curta Rozbijemy zabawę, de Roman Polanski, onde jovens invadem uma festa e começam a bater nas pessoas, com uma bela mise-en-scène rítmica. Quando assisti, achei que fosse ficção, mas posteriormente descobri que Polanski de fato contratou estranhos para causarem zona em uma festa, sem o consentimento de outras pessoas, filmando tudo isso escondido. O que pensar, então, dessa obra? Saber essa informação extra-fílmica muda minha relação com ela? Estaria aí a grande resposta? Se for documental, é “ruim” (pois é cruel); se for ficção, é “bom”? Vou ainda além nas indagações: deve uma informação extra-fílmica (que não recebemos da experiência do filme em si, mas de informações sobre bastidores, entrevistas etc) entrar no julgamento da obra em si?
Ainda sem se preocupar em responder tais questões, vamos para um segundo questionamento: e se Salve o Cinema na verdade não for exatamente um documentário, mas uma obra com partes (ou inteiramente) ficcionais? E se o diretor Mohsen Makhmalbaf não está interpretando a si mesmo, mas fazendo um personagem de um diretor cruel, apenas para construir a narrativa de seu filme? Em uma observação imediata, pode-se dizer que Mohsen (seja ele mesmo ou o personagem que interpreta) é alguém “mal”. Porém, será que o sacrifício pela arte que o filme tanto fala na verdade não é dos entrevistados, mas dele mesmo? Afinal, será que Mohsen, conscientemente assumiu o papel de um vilão em prol de capturar as reações mais genuínas e curiosas daquelas pessoas?
A partir disso, é possível questionar, então, até que ponto vai o limite de um artista? Indo para um exemplo extremo, seria aceitável matar um ser humano apenas porque um diretor de cinema está interessado em capturar o exato momento, em câmera lenta, em que uma vida se encerra, que os olhos indicam a falta de vida para sempre? Analogamente: pode um diretor submeter desrespeitar a dignidade humana de diversos cidadãos, aproveitando-se de suas fragilidades e mexendo psicologicamente com seus sonhos de serem atores ou apenas de terem uma vida melhor, apenas para capturar eventos curiosos em câmera? Penso que não, só que, ao mesmo tempo, não quero resumir todo este grande texto à uma conclusão que envolva uma simples conclusão moralista. Até porque, mesmo se reconhecéssemos Mohsen como alguém ruim, é inegável que certas falas dos entrevistados, que são consequência direta de sua maldade, e algumas escolhas de mise-en-scène, são bastante interessantes.
Agora que foram expostas tantas questões, parto para uma tentativa de pensá-las (sem a promessa de respostas) conjuntamente. Em várias das entrevistas, há embates verbais entre os candidatos e Mohsen, falando-se muito sobre “humanidade” e “sacrifícios pela arte”. Como se o filme fosse um grande experimento social, o diretor coloca aquelas pessoas em seus limites, vendo até onde elas estão dispostas a ir para conseguirem seus papéis. Evidentemente que ao mostrar o processo de escolha de elenco, um dos grandes interesses da obra está em investigar “o que é atuação?”. Ao capturar a reação de pessoas recebendo pedidos inesperados e absurdos, o interesse da câmera parece residir menos na atuação em si e mais no momento de ingenuidade, de surpresa, onde aquelas pessoas estão sendo elas mesmas. Investigar até onde vai a atuação e a não atuação, quando começa uma e quando acaba a outra. Se Mohsen for um personagem, é interessante pensar como o filme trabalha com uma lógica irônica: o diretor do filme é, na verdade, um personagem; já as pessoas entrevistas para papéis de personagens, são, na verdade, pessoas reais.
Fugindo da inicial metodologia finalista, se Salve O Cinema “é bom ou ruim?”, quero pensar no filme como um objeto em si, como uma experiência fechada em si mesmo. A partir disso, então, é curioso perceber os diversos temas que o filme evidencia, sendo um deles em destaque: o grande poder de um diretor de cinema. Até então, todas as questões trazidas envolvem essa figura e conclusão caminha para entender que ficcional ou não, imoral ou não, este filme reflete a inegável influência desta figura, seja para fins maléficos ou benéficos.
Basta um pequeno anúncio indicando a chance de estar em um filme e milhares de pessoas aparecerão para vê-lo, em fila, se matando para isso, como fiéis fervorosos de uma religião dispostos a encontrarem seu Deus. É o diretor que cria a demanda, é ele que decide quem entra na sala ou não, quem será escalado para o papel ou não. Mais do que isso, é ele que diz para aquelas pessoas o que elas devem fazer naquele momento, controlando suas ações: cantar, fingir estar lutando, chorar. Naquela sala repleta de câmeras por todo lado, há uma clara relação hierárquica de poder entre diretor e entrevistado. O que se dá neste ambiente é um jogo de tensão, de pessoas desesperadas para conseguir um papel tendo que seguir ordens daquele homem estranho apenas porque ele está do outro lado da cadeira — tanto que, uma hora, Mohsen cede a cadeira para duas entrevistadas. No fim, a intenção de Salve o Cinema pode ter sido uma homenagem ao centenário do Cinema, mas, certamente, o que se vê em tela é um filme que parece ser menos sobre a arte em si e mais sobre o artista, seja para o seu bem ou para o seu mal.