A primeira cena de “Se a Rua Beale Falasse” mostra um casal descendo uma escadaria. O deslocamento dentro do quadro é de cima para baixo, até que um movimento de câmera inverte o sentido desse deslocamento. A cena termina com uma manifestação de carinho entre Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James). A cena seguinte mostra Fonny recebendo uma visita de Tish na cadeia e descobrindo que será pai.
Em cerca de dois minutos, Barry Jenkins estabelece um tom melancólico e uma oposição de sentimentos que permearão todo o seu filme. “Se a Rua Beale Falasse” alterna entre o que as vidas de Tish e Fonny estavam prestes a ser e o que elas se tornaram, a cor da pele dos protagonistas sendo o fiel da balança. E este primeiro par de cenas sintetiza isso: um casal lutando para subir, mas sempre descendo.
Seguindo uma montagem não-linear, “Rua Beale” se divide em dois blocos. No primeiro, a jornada de Tish e sua família para provar a inocência de Fonny, acusado injustamente de estupro. No segundo, a jornada do casal, que se conheceu ainda criança, se apaixonou e tentou começar uma vida em Nova York. Essa estrutura privilegia o contraste de emoções em vez do desencadeamento natural de eventos. É um filme muito mais movido por seus personagens do que por sua trama. A fotografia reforça essa intenção com a escolha de planos médios e de primeiros planos, dando ênfase às expressões faciais dos personagens.
Jenkins também lança mão de planos em primeira pessoa, os “pontos-de-vista” (POV), para que o expectador se coloque na perspectiva de quem está ouvindo, para que ele possa “ver com os mesmos olhos” cada situação. No começo do filme, quando Tish vai contar à sua mãe Sharon (Regina King) que está grávida, o POV está em contra-plongée, mostrando uma figura que parece, de fato, assustadora. Esse é o estado de espírito de Tish: amedrontada e temerosa pelo seu futuro. Nas visitas a Fonny, a câmera fica na altura dos olhos, mostrando que não há medo naquela relação.
O que existe em “Se a Rua Beale Falasse” é uma crescente desesperança. A cada tentativa frustrada de Tish e da família Rivers de provar a inocência de Fonny, a cada decisão dura que eles precisam tomar para seguir tentando, fica evidente que aquelas vidas já foram afetadas num nível irreversível. E o máximo que a audiência tem para torcer na conclusão da história – Fonny ser libertado – se torna irrelevante, pois o mal já está feito. A trilha sonora, na maior parte do tempo limitada a um quarteto de cordas, cria uma atmosfera etérea, que parece não ter um começo ou um fim. A gravidez de Tish, que colocará mais uma vida negra no mundo para ser vítima do sistema que está punindo seu pai, é o símbolo disso. Uma opressão que parece apenas existir, sem um ponto definido de começo ou perspectiva de final.
Barry Jenkins e Spike Lee concorrerão na categoria de Melhor Roteiro Adaptado no Oscar, ambos por abordarem a questão do racismo na América. É curioso analisar a forma como cada um o faz: enquanto “Infiltrado na Klan” consegue rir da estupidez inerente ao racismo, “Se a Rua Beale Falasse” está mais preocupado com as vítimas desse racismo estúpido. Lee acredita que, se seguir lutando, a comunidade negra eventualmente desmontará essa estrutura racista. Jenkins deixa claro (já havia deixado em “Moonlight“) que, mesmo que o desmonte chegue, vidas negras inocentes serão destruídas no processo. Lee advoga na força coletiva como forma de vencer. Jenkins, na força individual como forma de sobreviver.
Barry Jenkins pode até adotar uma abordagem mais desconfortável em seus filmes, mas é inegável que ele coloca o dedo na ferida mais aberta dos Estados Unidos – e do mundo – a cada vez que o faz. E com um primor técnico invejável.