Penso que se o crítico Matheus Fiore já abordou muito bem e exaustivamente o uso de Michael B. Jordan como estrela e veículo condutor de Sem Remorso (Tom Clancy’s Without Remorse), em seu texto para o B9, me parece interessante observar nesta análise, de maneira complementar, uma outra faceta do filme, que não mais é a do tratamento de seu protagonista, mas a relação deste com o ‘outro’, ou seja, dos ‘inimigos’ que ele deve matar pelo caminho.
Há filmes que usam autoconscientemente a descartabilidade deste ‘outro’ para produzir diferentes efeitos, como, por exemplo, Bad Boys II, que promove a banalização da carne humana para fazer das suas cenas de tiroteio, que são um verdadeiro extermínio em massa, apenas uma afirmação do poderio político norte-americano. Já a franquia John Wick aposta na suspensão da descrença, em que vilões vão surgindo interminavelmente e o personagem parece invencível, capaz de realizar o impossível em termos de habilidade e sorte, para tirar o peso das incontáveis mortes ocorridas em cena e tratar todo o seu espetáculo de sangue como uma verdadeira dança corporal em que o importante é a performance, um verdadeiro “filme de dublê”.
Desses dois exemplos, o que se percebe é uma despreocupação proposital com este ‘outro’ enfrentado pelo protagonista, condizente com as propostas desses filmes (ótimos, diga-se de passagem). Enquanto isso, Sem Remorso usa da autoconsciência para produzir um efeito oposto. Quanto mais o protagonista ganha consciência de que ele e seus supostos inimigos são peões (aliás, a cena do xadrez durante o churrasco em família não poderia ser um foreshadowing mais óbvio), mais complexas ficam as implicações morais dos confrontos que ocorrem no filme. Neste sentido, há uma progressiva subversão da trama de “vingança” à John Wick para uma trama política conscientizada.
Afinal, no grande clímax da Rússia, quando John Clark precisa lutar com as forças especiais russas para sair do prédio, não é como se esses soldados fossem ‘vilões’, não havendo motivos na trama para considerá-los como tais, mas apenas soldados cumprindo ordens, igualmente manipulados por aqueles que não lutam no campo de batalha. Diante disso, ainda que nem o espectador e o protagonista vejam sentido em toda aquela matança, ainda assim, eles precisam assistí-la (espectador) ou realizá-la (protagonista), uma vez que foram colocados no tabuleiro pelos jogadores de fora que controlam o jogo, não sendo possível da situação sem o enfrentamento. E, de certa forma, se o prazer da adrenalina ainda é minimamente sentido, é porque tanto o espectador, acostumado com um cinema de ação despolitizado, quanto o protagonista, como soldado, foram treinados para tal a vida inteira.
Por outro lado, além do foreshadowing do tabuleiro de xadrez literal já citado, Sollima é bem eficaz em perpassar pela mise-en-scène a ideia de que os combatentes do filme não são vilões, mas apenas outro lado da mesma moeda em que John Clark ocupa uma faceta. Provavelmente o exemplo mais claro disso é na cena da invasão da casa do protagonista, em que ele e o russo estão baleados no chão, enquanto uma lanterna roda em 360º, iluminando parcialmente o rosto dos dois conforme passa. A decupagem da cena, ao seguir a lógica do plano-contraplano, além deste vai-e-vem da luz, como eles estivessem destinados a ser este paradoxo de soldados sem rosto que devem se matar, simplesmente por estarem de frente para o outro, mas ao mesmo tempo rostos individuais que se olham e reconhecem no momento de desespero pela luta da vida. Inclusive, quando John encontra o russo depois, momentos antes dele se explodir, a primeira vez que ele o revê é através da imagem refletida de um espelho.
No mesmo sentido, vale notar como se resolve espacialmente os dois únicos embates em que verdadeiramente há um antagonismo claro, que é quando John Clark vai atrás dos dois políticos (o russo e o americano). Ambos se dão dentro do banco de trás de um carro, no qual o soldado está ao lado dos dois e não mais de frente. Assim, não mais é um encontro marcado pela frontalidade, mas sim pela lateralidade, já que não se trata mais de uma relação em que o protagonista se pode colocar no lugar do outro, como seu igual, uma vez que jamais haverá uma equivalência da classe política com a dos soldados. Até por isso, o fim do filme volta ao uso da frontalidade, na lógica do plano-contraplano, com Clark olhando no rosto de Greer, ou seja, do soldado olhando no olho do outro soldado, reconhecendo-se um no outro. Esta é a grande vitória: o plano-contraplano não ser mais usado para criar uma relação dialética antagônica, mas para promover uma identificação.