Plano Aberto

Série 2 – Mostra Panorama (Voto Nulo; XAR – Sueño de Obsidiana; Plutão Não É Tão Longe Daqui)

A seguir, faço breves comentários sobre 3 dos 4 curtas integrantes da Série 2 da Mostra Panorama, dentro da Mostra Tiradentes 2023. Não comento sobre um deles, Infantaria, por já ter visto em outro festival e comentado naquela ocasião. Acompanhe nossa cobertura completa do festival aqui.


Voto Nulo

(Direção: Gustavo de Carvalho)

Enquanto se apresenta como um filme dentro do gênero suspense e que usa de seus códigos para explorar o medo e trauma feminino diante da sociedade do estupro e da violência contra a mulher, Voto Nulo se revela gratamente um curta que cozinha lentamente suas tensões, até explodir em panela de pressão. Assombrado pelo estupro não-visto da protagonista, em que apenas escutamos gritos, o curta aos poucos vai revelando aquele crime como parte de uma intriga política local. Um elemento fascinante para gerar um mal-estar é como o alegre jingle do político mandante do crime aparece ressignificado ao gerar um desconforto toda vez que é escutado, como lembrança do ato. Em seus poucos minutos, Gustavo de Carvalho constrói eficientemente um mapeamento vertical de uma sociedade do estupro, que começa desde a presença física nos capangas de rua como ameaça concreta, mas também explora a fantasmagoria do político que nunca aparece, até a cena final, mas cuja presença já vai se fazendo desconfortavelmente sentida desde o início, parte de uma rede invisível de forças opressora. 

Vale colocar em choque uma decisão de concepção no final de Voto Nulo, que consiste no clímax que mimetiza a facada de Adélio em Jair Bolsonaro, em 2018, só que com a protagonista feminina atacando o antagonista político genérico do filme — uma cena bem dirigida, inclusive, principalmente na sua explosão sensorial de sons. Não quero negar aqui o direito de se poder adaptar qualquer acontecimento histórico em ficção, mas esta ressignificação do evento real da facada de Adélio, acúmulo de um panorama político extremamente complexo que se deu ao longo de anos, soa como uma simplificação confusa e apressada das relações de causa-e-consequência que levaram ao atentado e posteriormente ao período bolsonarista. Tampouco quero negar que não se possa enxergar um panorama macro (bolsonarismo) apenas sob o enfoque de uma de suas características existentes (a violência contra a mulher), em uma narrativa que busca uma catarse do revanchismo feminino, mas fico com a grande suspeita de haver aqui um oportunismo de roteiro em se basear neste evento real como clímax para conquistar audiência. 

 

XAR – Sueño de Obsidiana

(Direção: Fernando Pereira dos Santos e Edgar Calel)

A premissa de XAR – Sueño de Obsidiana parte de uma ideia com potência: se os povos indígenas têm cada vez mais negado o seu direito de existir, inclusive com a ocupação de seus territórios no mundo material, o que resta então é o espaço mental, o mundo dos sonhos, como se a consciência e o direito de pensar ainda fossem o último espaço possível de (r)e(x)sistência, já que nele o homem branco não consegue adentrar para roubar. Indo além da premissa, a maneira como o sonho também se materializa em imagens a partir da escolha do cenário para representar esse espaço astral é parte essencial do projeto dos diretores Fernando Pereira dos Santos e Edgar Calel. Ao ter como espaço arquitetônico o pavilhão da Bienal de São Paulo, projetado por Oscar Niemeyer e marcado pelo hermetismo branco de pilastras e rampas (“roubaram até a cor do meu sonho”, diz Calel), o filme cria uma grande oportunidade de trabalhar as ambivalências entre as implicações de ocupação daquele espaço real, mas também desta camada existencial e mental. Seja considerado um espaço límbico vazio, o pavilhão da Bienal aqui também é marca de uma intervenção humana fechada em si mesma que aprisiona seu protagonista, em comparação à vida natural de árvores que podem ser vistas por trás das vidraças do prédio. 

Assim, o filme trabalha uma desterritorialização que é tanto sonora quanto espacial, mas sempre com a intenção de colocar Calel em contraste com o pavilhão da Bienal, perambulando por ele enquanto o filme trabalha sensorialmente no campo verbal as diversas vozes e barulhos que vão se acumulando como tentativa de autocontrole por parte do indígena de sua própria mente. Trata-se de um experimento artístico similar ao que fez o curta brasileiro Mal di Mare, de João Vieira Torres (exibido no Festival Olhar de Cinema 2022), cuja ideia de performance existe como uma espécie de contra-golpe de minorias, em que um ambiente moderno para exibição de arte moderna para um público de elite passa a ser ocupado por um corpo invisibilizado e ameaçado.

 

Plutão Não É Tão Longe Daqui

(Direção: Augusto Borges e Nathalya Brum)

Se construindo a partir de uma narrativa que permite aos poucos completar as lacunas de uma história que já se apresenta criptográfica de início, Plutão Não é Tão Longe Daqui opera realidades distintas a partir de dois pontos-de-vista de uma relação fraternal. De um lado, temos um caçula, e do outro, seu irmão mais velho. O ponto gravitacional da obra é a ausência do mais velho na vida do mais novo, que foi embora e nunca mais voltou no meio de uma infância já difícil com a morte da mãe. Aos poucos, entende-se que, após um crime, o irmão foi se esconder na favela de Plutão, vivendo foragido, o que levou a uma separação entre eles. A partir disso, o curta de Augusto Borges e Nathalya Brum opera nesta direção de ser um exercício de memória do irmão mais novo de resgatar imagens da infância, de quando ainda estavam unidos, tentando suprir a lacuna dessa sua não-presença, enquanto imagens do presente do irmão mais velho também mostram como ele está hoje.

Para isso, o filme alterna entre encenações de vivências cotidianas do passado, como um simples jogo de futebol, se dedicando boa parte do tempo a uma captura naturalista da vida na periferia, mas também envereda pelo caminho poético de imagens de arquivo, preenchidas de sentido pela narração em off do menino que dá uma densidade sentimental às imagens do irmão por explorar os contextos afetivos por trás delas. No outro vértice, o filme também oferece o ponto de vista do irmão mais velho no presente, cujas cenas parecem servir de contraposição à ideia idealizada que seu irmão tem dele e sugerem uma complexidade de sua figura. O filme está menos interessado em expandir isso, mas vai pincelando que o irmão mais velho continua envolvido com o crime e faz seus corres da vida, porém a falta de contextualização é uma oportunidade perdida para explorar a marginalização como fruto de uma cadeia viciada de falta de oportunidades. O tempo se passou desde a separação dos personagens e o filme resulta nesta tentativa de suprir os enigmas gerados por esse gap temporal, trabalhando a compreensão de dois mundos distintos (da idealização ao real; da memória ao concreto) para buscar expor as consequências da destruição de uma família periférica e como a inocência é rapidamente perdida nesse meio devido às circunstâncias impostas pela vida. 

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