O crítico francês Bernard Benoliel defende que o cinema de Clint Eastwood tem como tema recorrente a inevitabilidade da violência na História dos Estados Unidos. Ela agiria como um vírus imparável, incontrolável. Daí personagens de filmes como Os Imperdoáveis (1992) e Sobre Meninos e Lobos (2003) terem seus destinos atrelados a práticas violentas das quais tentam, em vão, escapar. No caso de Sniper Americano (2014), o protagonista Chris Kyle (Bradley Cooper) aprende do pai uma visão simplista e preconceituosa do mundo, forja sua identidade por meio dela e não consegue, nunca mais, dar um passo adiante. O tal vírus da violência é inoculado nele ainda garoto, determina a escolha e o sucesso profissionais, destrói sua sanidade e causa sua morte.
Mas Eastwood sequer esboça uma análise sociológica didática nesse sentido. Seu filme é frontal, dado a mostrar ao invés de explicar. Por isso, insuportavelmente ambíguo ao tratar de um tema que o próprio cinema americano se habituou a apresentar com imenso criticismo. A maioria dos muitos filmes realizados sobre a “guerra contra o terror” se engaja na denúncia das irregularidades por trás da Guerra do Iraque ou dos abusos cometidos por soldados americanos. Não há aqui essa dimensão de crítica explícita.
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Na cena que abre Sniper Americano, Kyle tem sob a mira de sua arma uma mulher e uma criança. Clint Eastwood começa o filme deixando claro o tipo de peso que será carregado pelo personagem, como consequência de suas ações. O corte que leva a história para o passado se dá pelo raccord sonoro de um tiro: o diretor transita de Kyle com o dedo no gatilho no Iraque para sua versão infantil, aprendendo a caçar com o pai, disparando contra um veado. A estrutura narrativa de Sniper Americano, portanto, é também pontuada por atos de violência.
Há outros momentos em que o estilo do filme se organiza a partir de mecanismos próprios da guerra. Num deles, um drone sobrevoa determinada região do Iraque, para onde os militares americanos se encaminham. Eastwood registra a presença desse robô voador nos céus através de um equipamento semelhante, que também lhe permite estabelecer, num plano aéreo, o cenário da batalha que está por vir. O artefato que identifica alvos iraquianos, que eventualmente pode até eliminar esses inimigos, se confunde aqui com a câmera que localiza a ação e ajuda a narrar. Em outro momento, pouco depois, Kyle dispara um tiro contra seu antagonista, o atirador sírio Mustafa (Sammy Sheik), e por alguns segundos a câmera de Eastwood segue de perto a trajetória da bala, quase atribuindo a ela um ponto de vista próprio. O olhar do protagonista, predominante ao longo de todo o filme, é superado pelo dos artefatos de destruição.
Mas mesmo esse olhar de Kyle, organizador da mise en scène de “Sniper Americano”, é por vezes mediado pelo visor de seu rifle. A relação do protagonista com o mundo que o cerca se dá por meio de equipamentos militares que o empoderam e, ao mesmo tempo, interrompem qualquer possibilidade de diálogo franco com a alteridade. Ao contaminar a estética do filme com a lógica de instrumentos bélicos, Eastwood cria uma experiência visual muito agressiva. A forma reverbera o conteúdo dessa tragédia de um homem que só consegue compreender o mundo a partir da violência.
Esse lugar central ocupado pela violência na articulação narrativa de Sniper Americano é uma pista importante de que Eastwood, apesar de rejeitar interpretações totalizantes, também passa longe do puro endosso da visão de mundo de Kyle. Na escolha por certas composições de cena, o diretor constrói seu olhar lamentoso. Primeiramente, para a guerra como um fenômeno destrutivo das relações pessoais em diferentes sociedades. Nesse sentido, vale registrar a breve cena em que Mustafa é visto abandonando esposa e filho pequeno para cumprir uma nova missão, movimento contínuo feito também por Kyle. Emerge brevemente em Sniper Americano uma espécie de história oculta, subterrânea, protagonizada pelo atirador sírio e que tem seu rival americano como antagonista silencioso e letal.
O lamento é também direcionado à própria trajetória de Kyle. Na cena de flashback que introduz a versão adulta do personagem, ele surge enquadrado de costas, emoldurado pela porta estreita de um celeiro. Essa composição remete ao muito conhecido final de Rastros de Ódio (1956), de John Ford, em que Ethan Edwards, o cowboy racista e amargurado interpretado por John Wayne, sai pela porta da casa de sua família e caminha lentamente, solitário, rumo à vastidão do mundo. As imagens carregam história, evocam outras imagens e seus significados. Eastwood anuncia, no início de Sniper Americano, a propensão de Kyle a seguir Edwards, sobretudo por também enxergar o mundo e se posicionar nele segundo uma lógica simplista, advinda de velhos clichês do western. O gênero cinematográfico que consagrou Eastwood, e que depois foi desconstruído por ele em Os Imperdoáveis (1992), assume aqui o caráter de uma maldição da qual os americanos não conseguem se livrar. Não à toa, a sequência do velório de Kyle é acompanhada por The Funeral, música de Ennio Morricone composta originalmente para Uma Pistola para Ringo (1965), de Duccio Tessari, outro western.
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Esse é, portanto, um filme sobre ciclos viciosos, fantasmas não exorcizados, permanências. O garoto que aprende com o pai a dividir o mundo entre lobos, cordeiros e cães pastores e que desenvolve, a partir daí, uma síndrome de salvador que o leva à destruição. A persistência do western como força modeladora de identidades na sociedade americana. E mesmo a importância, na relação de Eastwood com o cinema, da história de um atirador americano que vai à guerra e bate recordes de mortes, já que, segundo o diretor, o primeiro filme que assistiu na vida foi Sargento York (1941), de Howard Hawks, protagonizado exatamente por um personagem como esse. Sniper Americano é o diagnóstico de um país que não consegue sair do lugar.