Sofá

Sofá

O mundo pelo olhar dos destruídos pelo Estado

Matheus Fiore - 26 de janeiro de 2020

Como o próprio diretor, Bruno Safadi, descreve, “Sofá” é uma paródia tropical e bastante colorida. O filme acompanha uma dupla de cariocas sem teto, Joana D’Arc (Ingrid Guimarães) e Pharaoh (Chay Suede), que se conhecem na Baía de Guanabara, enquanto Joana procurava algo para comer e acabam unidos com um objetivo em comum: transportar um sofá encontrado no mar para os escombros de onde, antes, viveu Joana.

Inicialmente, “Sofá” parece se propor a ser um filme mais intimista e simples, que utiliza o contexto político e social do Rio de Janeiro apenas como pano de fundo para criar humor com as desventuras da dupla. Mesmo o humor proveniente das escolhas dos personagens, porém, sempre traz algum incômodo. Isso ocorre porque “Sofá” apresenta uma forma deliberadamente caótica, com mudanças constantes no tom de cor dominante dos planos, além de uma montagem que quebra a estrutura padrão da decupagem e não se importa tanto com regras de angulações.

Mesmo que não seja dito, fica implícito que Joana e Pharaoh possuem certa dificuldade para perceber a realidade como pessoas em condições normais fariam. Mesmo que a narrativa abra espaço para que isso seja abordado por uma leitura patológica, a intenção de Safadi parece ser, na verdade, mostrar como o próprio Estado destrói a mente das pessoas. Ao falar disso, porém, acabo tendo que falar, também, do que considero o ponto baixo do filme, que é sua política.

A protagonista de “Sofá” é uma das vítimas das inúmeras desapropriações criminosas que aconteceram no Rio de Janeiro durante as obras para os Jogos Olímpicos de 2016. O objetivo de Joana é recuperar seu lar, que foi destruído para que um viaduto seja construído no lugar. A personagem, então, passa boa parte do filme tentando, de alguma forma, reconstruir seu lar e recuperar o terreno perdido. Quando o assunto existe de maneira periférica ao drama central, “Sofá” funciona plenamente, já que a dinâmica entre Joana e Pharaoh e o fato de ambos serem figuras totalmente marginalizadas na sociedade cria uma comédia que, pela estética e pela condição dos personagens, imprime certa amargura ao filme.

Em seu clímax, porém, “Sofá” troca sua abordagem para uma mais politizada e direta, que rompe um pouco com o fluxo do filme. O caos e a sátira permanecem, mas agora norteados por uma condução que está preocupada diretamente com a questão política, e não mais a utilizando como pano de fundo. Com isso, “Sofá” até se encerra de maneira digna, mas aposta no drama quando a despretensão e a comédia eram seu ponto forte. Mesmo que, em termos de conteúdo, o longa jamais se anule ou se traia por essas escolhas, Safadi não demonstra, tratando de forma séria, o mesmo domínio que tinha enquanto contador de piadas e histórias dos marginalizados pela veia cômica.

Há uma demanda interna do filme por uma mudança estética que acompanhe a mudança de escopo. O longa parece gritar por uma transição que dê alguma sobriedade a esse cosmo fílmico tão essencialmente caótico. O que ocorre, porém, é a manutenção do experimentalismo. Somando esses fatores, a conclusão da obra não chega a desagradar, mas nem entretém como os momentos anteriores, nem impacta como gostaria, justamente por ser fiel demais à estética apresentada inicialmente.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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