Caótico e desordenado como se poderia esperar de um documentário de Abel Ferrara, Sportin’ Life é o filme que não fala sobre a pandemia do novo coronavírus, mas que é inteiramente transformado por ela de uma forma bastante interessante. A obra começa como um registro bastante pessoal do último ano de Ferrara, da finalização de Sibéria, filme que estreou na 70ª edição do Festival de Berlim, até sua exibição no festival. É um documentário que Ferrara se apresenta como uma estrela de rock, ainda cheio de tesão pelo que faz mesmo com seus 69 anos.
Entretanto, Sportin’ Life, não se limita a esse recorte. Afinal, o filme começou a ser construído justamente no momento em que o mundo se viu imerso na crise trazida pela COVID-19. Em sua primeira metade, o documentário não constrói tanto com as imagens de bastidores de Berlim e as entrevistas com Ferrara e Willem Dafoe – ator que, vale dizer, colabora com Ferrara há décadas e tem interpretado personagens que representam o próprio cineasta em seus filmes recentes. É um documentário que, em dado momento, parece até mesmo um amontoado de registros íntimos do cineasta, mas que é transformado inteiramente.
A pandemia chega, e Sportin’ Life, assim como Ferrara, Dafoe e toda a indústria cinematográfica, são obrigados a parar. As imagens de Berlim lotada para as primeiras sessões do festival, os shows nos quais Ferrara aparece empolgado toca guitarra, as entrevistas coletivas sobre o processo criativo por trás de Sibéria… Tudo é posto de lado por fotografias duras, de ruas vazias, cinemas fechados, médicos, pacientes e caos. O filme é sequestrado e Ferrara transforma o registro dos bastidores de seu 2020 em um filme sobre a falta que a vida externa faz para o diretor.
É interessante notar, por exemplo, como esse choque ressignifica as imagens. Se antes, Ferrara sendo celebrado pela imprensa poderia parecer um exercício de ego, logo, se prova como um desabafo sobre a saudade que o diretor sente de “aglomerar” para consumir e discutir cinema. Ferrara ainda é perspicaz ao notar o potencial de seu filme de se tornar algo além de uma experiência própria, e permite que o projeto siga um caminho próprio. Sportin’ Life se torna mais caótico e desordenado a medida que aprofunda-se na pandemia.
Ferrara abre mão do controle de seu filme para acompanhar as imagens que seleciona do mundo perdendo seu rumo. Sportin’ Life é um documentário que, assim como toda a carreira de Ferrara, se transforma no meio do caminho em algo que não sabe exatamente o que é. Um documentário com estrutura um tanto quanto experimental, que parte da voz única de um artista para se tornar um reflexo bastante universal do caos trazido pela pandemia. Um filme que se estrutura e desmonta no que Ferrara parece acreditar ser o fim do mundo.