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Suspiria: A Dança do Medo

Suspiria A Dança do Medo 2018 Luca Guadagnino Dakota Johnson

Se o filme de Luca Guadagnino (do excelente “Me Chame Pelo Seu Nome“) não tivesse “Suspiria” no título, conseguiria uma nota melhor? Num sistema de 0 a 5 estrelas, talvez tivesse meia estrela a mais, mas nada além disso. É verdade que o italiano se vale da iconografia do compatriota Dario Argento para atrair o público ao cinema e depois a utiliza de uma maneira que levanta questionamentos sobre a sua própria compreensão dela (como a saudosa “Família Buscapé” fez ao colocar uma mesa de sinuca na sala de jantar e usar os tacos para passar as caçarolas de comida entre os convidados). Mas, principalmente, seu filme tem erros estruturais e técnicos incompatíveis com a pretensão artística à qual se propõe ao longo de mais de duas horas enfadonhas e praticamente vazias.

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Esta versão de “Suspiria” de fato levanta debates temáticos mais ambiciosos do que o filme original. A questão está em como esses debates favorecem a narrativa principal. E a resposta é “em praticamente nada”. Se o pano de fundo político que o filme traz fosse simplesmente retirado do corte final, não faria falta. E isso é um erro grave de edição estrutural.

Num roteiro, os chamados subplots (“História B”, “História C” etc.) são histórias de apoio ao plot (“História A”). Eles podem se conectar por abordarem os mesmos temas de formas distintas, por acontecerem ao mesmo tempo ou no mesmo lugar, até mesmo por envolverem personagens menores da “História A”. Subplots servem, fundamentalmente, para enriquecer o plot. Existem três em “Suspiria”: a infância de Susie Bannion (Dakota Johnson) numa comunidade Amish, a busca do doutor Josef Klemperer (Tilda Swinton!) pela desaparecida Patricia (Chloë Grace Moretz) e o terrorismo guerrilheiro do período conhecido como “Outono Alemão“. Os temas levantados em cada uma dessas histórias encontram eco no plot, a organização secreta de bruxas que opera nos subsolos da Academia Tanz. Mas como eles se se “encaixam” para formar uma história coesa?

O ponto mais problemático é o político. O sequestro do avião da Lufthansa permeia a trama e funciona, de certa forma, como uma analogia à situação da Tanz. O que impede essa “História B” de funcionar é a falta de envolvimento emocional entre ela e as alunas da academia – não há um parente ou amigo de alguma delas no voo, ou envolvimento direto de alguém próximo no sequestro. Fracassa também porque está completamente fora de tom quando comparado ao resto do filme (embora isso reflita uma decisão consciente, que será abordada com mais detalhes nos próximos parágrafos) e porque nenhum personagem de “Suspiria” se importa com esse sequestro. Ele é mencionado nos noticiários que os personagens ignoram. Se um evento não repercute dentro de um filme, porque repercutiria fora dele?

A infância de Susie (vamos chamá-la de “História C”) traz questionamentos interessantes sobre maternidade, conservadorismo e controle, mas seu tempo de tela é mínimo – restrito a pesadelos da protagonista – e, por si, não compõe uma narrativa de arco fechado. Esses fragmentos dão um vislumbre da vida que Susie abandonou para buscar seu sonho de dançar, mas não dão a ela, de fato, uma personalidade tridimensional, construída por conflito e tomada de decisão. A escolha pela religião Amish soa arbitrária pela irrelevância. Qualquer lar conservador serviria a esse propósito.

Por fim, a “História D” – como esse filme tem subplots! – é a única que rende bons momentos a “Suspiria”. A jornada de Klemperer começa como a de um mero psiquiatra preocupado com o desaparecimento de sua paciente e se revela, aos poucos, algo muito maior: a justificativa para o doutor não desistir da busca é sólida e poderosa. É o único momento em que contexto histórico e narrativa se juntam para criar algo grandioso. Se o filme eliminasse as histórias “B” e “C” e desse tempo para o desenvolvimento desta, o resultado final seria muito mais equilibrado. A falta de foco compromete o arco de Klemperer, que se dilui e perde força.

A edição de Walter Fasano é a grande “vilã” de “Suspiria”. Não só na estrutura já mencionada, mas também nas escolhas de cortes dentro das cenas. Não existe ciência exata na hora da edição: a decisão de quando e como cortar sempre será intuitiva. Ainda assim, existem convenções básicas que primam por fluidez, ritmo e dinâmica numa cena. Fasano ignora todas elas. Todas. A ponto de parecer que o faz de propósito. Mas o resultado não fica melhor por isso.

Constantemente, a escolha de planos faz com que a regra dos 180º seja quebrada. Com as posições dos personagens devidamente estabelecidas, quebrar essa “regra” não causa maiores problemas e ainda cria possibilidades narrativas. Mas Fasano faz isso para apresentar personagens. Para trocar de ambientes. Quando um personagem olha para a direita, o próximo corte mostra alguém à esquerda, como se estivéssemos vendo algo às costas do primeiro. Cortes abruptos fazem parecer que as cenas terminaram antes da hora. No pior momento de uma edição que beira o amadorismo, Klemperer está caminhando por uma calçada, há um corte e o próximo plano é de Klemperer andando na mesma calçada, menos de dez metros adiante.

Mas Fasano não é o único culpado. Uma das cenas com maior apelo visual do filme é comprometida por falta de paralelismos: a ideia dela é ilustrar como as ações em um lugar geram reações em outro. Mas as atrizes que protagonizam a cena não estão em posições equivalentes. Quando uma está no centro, a outra está à direita; quando uma está à direita, a outra está no centro etc. A blocagem (disposição geográfica dos atores dentro do set) e a composição de planos em cada cena são responsabilidade direta de Luca Guadagnino e do cinematógrafo Sayombhu Mukdeeprom, que fazem um trabalho desleixado e preguiçoso, desvalorizando os belos efeitos visuais empregados para transformar uma bailarina num “pretzel humano”.

A fotografia, por sinal, é o aspecto técnico que mais separa as duas versões de “Suspiria”. Enquanto o filme original usa cores puras e vivas para criar um mundo surreal, o remake aposta em uma “discrição dessaturada”, com mais penumbras e tons de cinza. É a mesma estética realista adotada por dois ótimos filmes de terror recentes: “A Bruxa” e “Um Lugar Silencioso“. Guadagnino une isso aos atentatos terroristas e à comunidade Amish para advogar que um covil de bruxas psicopatas é apenas mais uma ameaça em um mundo que, ao natural, já é bastante assustador.

Alternando ideias ruins e execuções toscas, “Suspiria: A Dança do Medo” erra em quase tudo. Infla sua história com tramas desnecessárias, não assusta em momento nenhum e explica elementos que funcionaram no filme original exatamente por serem inexplicáveis (e inexplicados). Nem as boas atuações de Swinton, Johnson e Moretz conseguem salvar o filme. Às vezes, o artilheiro do campeonato joga por um time rebaixado. O jeito é arrumar um contrato melhor para a próxima temporada.

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