“A great artist can make art by simply casting a glance.”
– Robert Smithson
Se o cinema de James Benning, na maioria esmagadora de sua filmografia, é pautado por uma proposição observacional onde víamos paisagens extensas, espaços abertos e ocasionalmente retratos mais íntimos de variados sujeitos, Telemundo apresenta uma inflexão crucial nos seus mecanismos. Temos um artista que baseia suas obras em um olhar imposto, um captador de imagens que sedimentam em nós uma pregnância, uma duração e uma força e, em Telemundo, esse olhar volta-se para si mesmo; o “lançar um olhar” (casting a glance) sobre o mundo que serviu de base para quase todos os seus filmes torna-se o objeto de suas inquietações. Assistimos o próprio diretor e a atriz/diretora Sofia Brito assistindo um filme na televisão em um único plano, sem cortes, interrupções, edições, sem nenhum realinhamento dessa visão.
E qual seria o mundo a que Benning e Brito lançam o olhar? O mundo codificado da Telemundo, emissora de rede internacional de conteúdo em língua espanhola. Os olhos de Benning e Brito miram no extracampo, o aparelho de televisão estaria a um contraplano de distância, nunca visto, apenas escutado. Os sons da TV invadem a faixa sonora do filme como fazia o rádio em filmes como RR e The United States of America, o extracampo desses filmes é indeterminável, percebemos a vastidão do mundo que se esprai além das limites do enquadramento. Durante a sessão do filme sendo transmitido, Benning e Brito trocam algumas palavras, citam textos, cada um na língua nativa, Brito em espanhol e Benning em inglês. Suas falas chegam a competir com os ruídos do aparelho de TV e neste sentido habitam em uma mesma diegese, são extensões do mundo representado ao qual assistem.
Porém a palavra em Telemundo assume uma condição emblemática em moldes similares ao cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet no sentido de que está em uma condição quase insustentável. As palavras enquanto unidades de significado e sentido estão em franco atrito com seu caráter físico e vocal que por sua vez é privilegiado pelos dispositivos de desarticulação que o filme assume. Se assumimos os textos em sua dimensão de significado também adentramos em uma contradição similar, os textos citados questionam o próprio lugar da palavra e da racionalidade, discutem o problema da linguagem e da matemática aplicada aos números irracionais. Quando tomamos a linguagem em consideração, vemos que ela apenas está ali para se colocar em xeque, a intransigência dos dispositivos de Benning, com a câmera fixa e com a duração da imagem que não cessa de se sedimentar na nossa percepção, age a favor dos usos da linguagem como um potencial sobre sobre seus significados estritos.
Telemundo nos aparece como um emblema sobre o estado atual das coisas em que um acesso não pré-codificado ao mundo parece cada vez mais impossível. A extensão do universo, que se estendia pelos retratos de paisagem, é reduzido aqui a ruídos de um monitor que sequer vemos e às micro-reações de quem assiste suas imagens. Ver as coisas torna-se uma experiência cada vez mais fechada e próxima do solipsismo. Se os aparatos da linguagem e da razão matematizada já nos mostram suas falhas e limitações, a imagem ainda segue aqui como um elemento firme em suas bases.
Em contrapartida às perturbações do mundo mediado por sistemas que estão no limiar do insustentável, Benning nos oferece uma visão quase “imediata”, desestabiliza códigos possíveis, abole a fronteira entre uma língua e outra. Mais uma vez ele cerceia o seu dispositivo imagético, lhe coloca imposições para poder, contudo, libertá-lo ao registro das coisas em sua iminência, coloca a câmera em uma posição estática para que esta registre o que aparece diante da objetiva; uma postura de reduzir os próprios movimentos e assumir um estado de inação como condição para sentir o movimento do mundo. Lançar um olhar ainda é para Benning a condição mais simples e, justamente por isso, a mais desafiadora e desestabilizadora de se assumir no mundo hoje.