Seguindo o padrão da HBO em produzir filmes para a televisão com substância digna de cinema, The Normal Heart é uma adaptação da aclamada peça homônima que expõe sua genialidade em um roteiro magnifico. Um fato histórico, uma luta de classe, a guerra contra o preconceito: os grandes tópicos abordados quando uma obra trabalha com temas reais da comunidade LGBT estão presentes, mas isso não o torna especial. É a redução dessas batalhas ao nível simbólico, que aflige todo ser vivo, a responsável por extrapolar o gênero e transformá-lo num filme humano. O universo dos homens gays de Nova York fica pequeno para a análise, porque temas como liberdade, igualdade, respeito e orgulho são necessários não apenas para eles, mas para todos nós.
Ned Weeks, escritor, é a clássica figura do deslocado. Isso fica evidente já na cena de abertura, quando ele chega a uma ilha paradisíaca onde seus amigos gays se libertam das amarras sociais para serem apenas homens gays por um fim de semana, sem receios ou reservas. Ele não está “no armário”, mas também não encontra satisfação naquele ambiente, pois não busca uma autoafirmação da sua identidade, mas sim amor. Também lhe é salutar o enfrentamento, muitas vezes hostil, para ter sua condição de homossexual tratada com a normalidade que ele considera justa. Ned é e se vê como uma pessoa normal, indignada com a capa de invisibilidade que o mundo coloca sobre ele e seus pares.
Mark Ruffalo, que já havia sido injustiçado no Oscar por Spotlight: Segredos Revelados, tem mais uma oportunidade para mostrar o grande ator que é. Mais do que o Hulk/Bruce Banner de Vingadores, ele é um recipiente temporário para a alma de seus personagens. Em olhares, gestos ou mesmo no mais simples silêncio, ele dá uma dignidade monstruosa a Ned. Ao entender perfeitamente o que seu personagem busca (um tratamento igual ao que qualquer grupo receberia numa situação similar caso não fosse gay), enfatiza exatamente os pontos de virada de seu personagem. Quando confronta seu irmão Ben (Alfred Molina, outro excelente ator que é subestimado pelo grande público), o que está em jogo não é a sua tolerância, mas o seu respeito. Tal consideração não é desejada apenas por LGBTs, mas por qualquer um. Mas algumas pessoas precisam lutar com unhas e dentes para obtê-la, e Ned luta. A nota média do elenco é tão alta que mesmo a escolha duvidosa de Jim Parsons é minimizada. Mesmo sem conseguir abandonar o Sheldon de The Big Bang Theory, seu personagem tem importante função narrativa, sendo uma espécie de “inventário”, mostrando para o público, pela sua perspectiva, o estado atual da crise na saúde dos gays.
Mas The Normal Heart deixa claro que esse não é um “problema gay”, mas de toda pessoa que não se encaixe em padrões. A doutora Emma Brookner (Julia Roberts), uma cadeirante vítima de pólio – doença transmitida, assim como a AIDS, por um vírus – é a única médica a tratar dos primeiros homens contaminados e a principal voz heterossexual a exaltar a importância de se descobrir como enfrentar o HIV. Assim como os pacientes que trata, ela custa a ser ouvida e, quando é, não tem a credibilidade necessária para que as autoridades reconheçam o problema. A causa é simples: descaso, motivado pelo preconceito.
Por isso, são os gays que precisam encampar a linha de frente na luta contra a AIDS, o que lhes dá protagonismo na própria causa: The Normal Heart não é apenas sobre o principal freio na revolução sexual das duas décadas passadas, mas sobre a luta de um grupo pelo direito de existir. O grande choque, materializado na recomendação “pare de transar”, vai além da questão física ou mesmo afetiva. Transar com quem se tem vontade é a forma como encontraram para abraçar sua normalidade. Ter isso negado é reduzir sua essência. Não é a morte que assusta os personagens do filme, mas o medo. Tal qual a homofobia, que não mata apenas literal, mas também figurativamente. As chagas, primeiros sintomas da doença, representam a marca física de párias, já marcados pela sociedade por conta de sua natureza.
Com os símbolos bem definidos, The Normal Heart tem um final que é, ao mesmo tempo, triste e feliz: feliz pela vitória de um homem na sua luta para ser visto como todos nós somos sem esforço, mas triste pelo preço cobrado para isso. O direito de amar sem medo e de ser tratado como qualquer outro em caso de necessidade não deveria ser colocado em discussão. Esta é, sem dúvida, uma das maiores chagas da História Contemporânea: o tempo levado para que se começasse a estudar uma doença que contamina milhares de pessoas diariamente. E que não começou por empatia. Ainda há muito para evoluirmos.