Em A Forma da Água, Guillermo del Toro mistura, a exemplo de como fizera brilhantemente em O Labirinto do Fauno, História e fantasia. Desta vez, entretanto, não cria mundos separados com uma personagem capaz de trafegar entre ambos. É precisamente pela inserção de um elemento fantástico no mundo ordinário que o mexicano trabalha questões atemporais como amor, piedade, amizade e empatia. Emociona do jeito certo, aquele que passa longe da pieguice, mas não deixa de ser efusivo.
No primeiro de muitos acertos, seu elenco foge do padrão pasteurizado de beleza presente em superproduções. A excelente Sally Hawkins, que protagoniza o longa, é intencionalmente desengonçada e constantemente filmada em ângulos que acentuam feições ligeiramente fora de esquadro. Com isso, del Toro exibe a beleza única de Eliza Esposito, próxima à da intérprete, e não algo esquecível, genérico. Richard Jenkins tem um papel fundamental para A Forma da Água também em cenas de ação, mesmo com seus 70 anos. E Octavia Spencer, que começa como uma personagem caricata, cresce junto com a trama.
Ambientado na Guerra Fria, del Toro reprisa seu recurso narrativo de usar o passado para discutir o presente. Se no já citado Labirinto e em Hellboy ele havia escolhido a Segunda Guerra Mundial, onde a tensão ideológica culminou num conflito em que, ao fim e ao cabo, havia um lado para se “torcer”, A Forma da Água ocorre num momento da História em que os dois lados usaram do medo e da força para suprimir as liberdades dentro das próprias fronteiras. Os países do Leste Europeu ficaram por trás daquilo que Winston Churchill chamou de “Cortina de Ferro“, enquanto os americanos sentiram na pele o flagelo do Macartismo. Em sintonia com essa luta de iguais, tanto o coronel Richard Strickland (Michael Shannon) quanto os espiões soviéticos usam exatamente o mesmo figurino: calça, paletó, gravata e chapéu pretos com camisa branca.
Foi um período melancólico, logo após a morte do presidente John Kennedy – com tudo o que ele representava – e a consequente ascensão de seu vice Lyndon B. Johnson – com tudo o que ele representava. Numa época em que o medo vencia, a ignorância imperava. Existe um exemplo subliminar no filme: o cinema embaixo do apartamento de Eliza está trocando o letreiro e o dono grita “tem mais um s, é Mardi Grass“. O termo “Mardi gras”, que significa “terça-feira gorda” é equivalente ao nosso carnaval. Mas o desconhecimento do francês a transforma em “terça-feira da grama”.
Strickland representa o lado feio dessa equação, e a atuação de Shannon deixa evidente o quanto um bom vilão engrandece um filme. É o personagem mais real de A Forma da Água, e aqui o extremismo na América da Guerra Fria retratado por del Toro ecoa no extremismo na América de Donald Trump. Tecnocrata, fundamentalista religioso, racista e ultranacionalista, Strickland no fim das contas é apenas um covarde abusando da autoridade para humilhar subalternos. O seu antagonismo com a criatura (Doug Jones) é simétrico: tudo o que o primeiro tem na aparência respeitável, o segundo tem em carisma. E é inerente aos canalhas odiar o carisma daqueles pelos quais não alimentam respeito.
Clássico em filmes de del Toro, A Forma da Água preserva o tom lúdico, mas não abre mão da brutalidade. O diretor também não tem pudor para mostrar violência. A criatura, quando apresentada, é sempre filmada de baixo pra cima, com seus interlocutores menores do que ela, o que a torna maior e assustadora. Quando os laços com Eliza se estreitam, ela passa a ser filmada na altura dos olhos, ficando em pé de igualdade com os outros personagens. É quando vemos sua beleza. Outra escolha que se prova certeira é a mudez de Eliza: sua comunicação com a criatura se dá com o corpo e não com palavras (que ele, afinal de contas, não conseguiria entender), um símbolo de que nenhuma barreira de comunicação pode vencer o desejo de se aproximar. E que, por mais diferentes que sejam, duas pessoas (no caso, formas de vida) podem ver uma na outra a felicidade.
O grande mérito de A Forma da Água é usar a imersão cinematográfica para fazer uma analogia aos preconceitos do cotidiano: quando nos aprofundamos na história, imediatamente nos afeiçoamos à criatura e temos ojeriza a Strickland. Este conto de fadas que mistura monstros, romance, poesia e um tanto de violência pode parecer pura ficção de um cineasta audacioso. Mas é uma parábola sobre os dias atuais. E, lamento informar, muitas vezes o papel de Strickland é desempenhado por nós mesmos.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2017.