Em um tempo em que alguns dos principais líderes mundiais falam sobre construir muros para separar povos, é sintomático que o cinema, como sempre fez ao longo de sua história, retrate e questione o pensamento autoritário e manipulador destas figuras políticas. Recentemente, o bom Kingsman – O Círculo Dourado criticou acidamente o moralismo de parte da população americana (sobrando até para Donald Trump). Agora, pelas mãos do neozelandês Taika Waititi, chegou a vez da Marvel trazer uma obra com este teor – mesmo que subaproveitado em prol das “gracinhas” que esvaziam todos os filmes do estúdio. Em Thor: Ragnarok, vemos a mesma fórmula enlatada de história de herói com leves camadas de estudo sobre governos autoritários, manipulação de massas e liberdade.
Mais uma vez a trama acompanha o Deus do Trovão, Thor. Após o retorno de Hella, a Deusa da Morte (vivida pela sempre fantástica Cate Blanchett), Thor acaba banido de Asgard e encontra-se preso em Sakaar, um planeta-arena comandado pelo egocêntrico Grande Mestre (Jeff Goldblum), que obrigará o protagonista a enfrentar seus mais poderosos guerreiros em uma arena de combate. Entre fugas, batalhas e um caminhão de piadas, Thor cruzará com alguns velhos conhecidos e outros novos personagens, e precisará formar um time para voltar a Asgard e resgatar seu povo.
Ao estabelecer as relações de poder, o roteiro de Thor: Ragnarok abre mão do maniqueísmo, o que já é um grande salto para um blockbuster da Disney. Tanto o governo do Grão Mestre (um dos vilões), em Sakaar, quanto o de Odin (um dos heróis), em Asgard, são baseados em mentiras: enquanto o primeiro utiliza a clássica política de “pão e circo” com sua arena de combate – que, aliás, se faz presente também no governo de Loki, quando ele romantiza seus feitos por meio de uma tragédia teatral -, o segundo esconde de seu povo e familiares o passado violento que originou seu império no Reino dos Deuses. Com isso, o filme permite que o espectador entenda as falhas de ambos os métodos de governo – algo que, infelizmente, não ecoa nos respectivos povos e faz muita falta na trama.
Se nas análises de governo a sutileza impera, o mesmo não pode ser dito do desenvolvimento da trama: Thor: Ragnarok abusa de diálogos expositivos. Não só personagens, mas sistemas, mundos e planos são explicados didaticamente em conversas excessivamente detalhadas (que talvez sejam os únicos momentos em que não há piada). O humor já característico da Marvel Studios também passa do ponto. Não há tensão em sequer um segmento da narrativa, visto que, entre cada troca de socos ou até mortes impactantes, haverá uma ou outra piada desnecessária, inserida a forceps nas cenas para manter o tom leve da narrativa.
Visualmente, o filme mostra uma transformação. Em Ragnarok, há uma mistura de equipamentos tecnológicos com roupas extravagantes e coloridas, o que é justo se lembrarmos que toda a trama é deslocada de Asgard para outros mundos, assemelhando-se aos ideais visuais estabelecidos em Guardiões da Galáxia. Quando a história vai a Asgard, porém, a impressão é de que sempre estamos diante de um cenário distante e vazio – algo que é intensificado pelo uso de poucos figurantes e da manutenção de planos médios e fechados, dando a impressão de que o Reino dos Deuses se resume a um grupo de duzentas pessoas.
O desenvolvimento dos personagens só decepcionará quem já não está acostumado com a fórmula Marvel. Se em Loki o roteiro busca levar o personagem um passo adiante, com a Valquíria de Tessa Thompson há sugestões de uma história de vingança, bem como existe com Thor. Nenhum deles, porém, é desenvolvido com seriedade; há apenas sugestões aqui e ali de amadurecimento, o que faz com que as transformações vividas pelos personagens soem superficiais e mecânicas. Já com Hella… Bem, Cate Blanchett é uma excelente atriz e, como sempre, é eficiente, mas sua personagem possui a profundidade de uma piscina de bolinhas, sendo mais uma vilã genérica, maniqueísta e maléfica do universo Marvel.
O excesso de humor, a ausência de profundidade dos personagens e a excessiva simplicidade da trama fazem com que o filme não tenha impacto dramático algum. Bem como os irmãos de estúdio Homem-Formiga e Doutor Estranho, Thor: Ragnarok até traz alguma novidade em conteúdo: enquanto Formiga e Estranho tratam de responsabilidade e tempo, Thor ensaia sobre a identidade de uma sociedade e estruturas políticas opressoras. Infelizmente, porém, a forma é a mesma. A narrativa calca-se em diálogos expositivos, personagens vão a um ponto, lutam, vencem, vão a outro ponto, lutam, vencem, e por aí vai. Tudo, claro, atolado por piadinhas aqui e ali.
Thor: Ragnarok é uma comédia repetitiva e desgastante, que sabota as próprias ideias pela insuportável necessidade de, a todo momento, trazer uma gracinha entre os diálogos. Não há um herói que busca salvar seu lar, um anti-herói que procura descobrir seu lugar no mundo e uma vilã que quer destruir seus inimigos; há um comediante que calha de ser o herói, um humorista que calha de ser o anti-herói e a piadista que calha de ser a vilã. Óbvio, bobo e genérico, tanto em seu plot quanto em seus personagens, Thor: Ragnarok é tudo que a Marvel quer que ele seja: um enlatado esquecível e divertido. Mas poderia ser mais. Pelo menos é um enlatado que toca Led Zeppelin.