Plano Aberto

Todas as Melodias

Nome fundamental para se entender a música popular brasileira a partir da década de 1970, Luiz Melodia, falecido em 2017, finalmente ganha um documentário robusto sobre sua vida e obra. “Todas as Melodias”, que tem sua pré-estreia na Mostra de Cinema de Tiradentes desse ano, é encabeçado pelo realizador Marco Abujamra, a quem tal território – o de trazer para o cinema a trajetória de importantes músicos do país – não é inédito, tendo anteriormente sido co-diretor  de “Jards Macalé: Um Morcego na Porta Principal” (2008). A co-direção do novo longa é de Mariana Marinho e Viviane D’Ávilla.

Tendo o documentário sobre Macalé como referencial, logo de cara há um espaço fundamental que o diferencia do filme sobre Melodia: a presença, ou falta dela, do artista. Se em “Um Morcego na Porta Principal” o músico documentado é parte ativa do filme, em “Todas as Melodias” isso não é possível. A memória do músico é trazida, de maneira mais direta, por sua viúva, a cantora e produtora Jane Reis, uma das presenças constantes ao longo dos oitenta minutos de projeção e cujas falas, de certa maneira, costuram o filme como um todo. Sempre filmada com câmera na mão e emoldurada por cores dessaturadas, Jane compartilha depoimentos sobre sua vida conjunta com Luiz Carlos dos Santos e sua visão sobre o artista Luiz Melodia.

O bojo do filme é preenchido também por registros de amigos, intérpretes e colaboradores do artista que é objeto do longa, como o já mencionado Jards Macalé e as cantoras Zezé Motta, Céu e Liniker. No caso das duas últimas, seus depoimentos são incorporados pelo filme enquanto recursos de linguagem, sendo filmados com a câmera solta, de maneira similar aos depoimentos de Jane Reis, mas em ambientes de estúdio (ou palco) que, com uma iluminação trabalhada, adquirem um ar onírico, que é reforçado pela movimentação da câmera e por todo o trabalho de foco. As canções de Melodia são objeto de interpretações poderosas por parte dessas duas cantoras, ressoando como homenagens emotivas, afetivas. De maneira similar funcionam dois trechos que contam com a participação do poeta, cantor e compositor Arnaldo Antunes: em um, lê um texto de próprio punho que menciona a figura de Melodia, estilizado em tela quase como uma poesia concreta, e em outro, calça sapatos que pertenceram ao biografado do longa, fala sobre sua relação com ele e entoa, tímido, trechos de “Magrelinha” (canção-chave, aliás, para “Todas as Melodias”).

Ainda no que se refere a afeto, há no longa breves depoimentos com os filhos do artista, que não obstante possuem forte carga emocional no que se refere aos segmentos relativos à vida pessoal, familiar de Melodia.

O que transita entre o pessoal e o profissional, e em verdade ocupa parte majoritária da minutagem de “Todas as Melodias”, é uma quantidade maciça de material de arquivo, que vai dos anos 1970 até a década de 2010; a história de Melodia é contada através de filmes Super 8, reportagens de televisão, registros de apresentações e entrevistas que, em conjunto, compõem a figura de Luiz Melodia, homem, músico e figura midiática. A esse vasto acervo o filme não faz questão de tentar costurar através de narrações que discorram sobre o que está em tela, uma decisão de linguagem que deixa o material respirar e falar por si próprio, semelhante ao que o saudoso Nelson Pereira dos Santos fez em seu documentário “A Música Segundo Tom Jobim” (2012).

E as imagens de arquivo, de fato, falam. Ainda que não sigam exatamente uma cronologia linear engessada, dão ao espectador uma boa noção de cada fase da vida e da carreira do cantor e compositor, desde a intimidade com a família até suas relações com a imprensa. Na disposição desses clipes, inclusive, o filme captura com sucesso a maneira com a qual a mídia, brasileira e internacional, lidava com um artista negro de sucesso que transcendia o samba e incorporava à batida brasileira os sons do blues e do rock ‘n’ roll, durante o zeitgeist que compreende o anos 1970 e 1980.

Melodia é mostrado aqui como sendo estereotipado pela televisão; a mídia cria dele uma imagem deturpada e negativa, o descreditando enquanto compositor, alegando que suas letras “não fariam sentido” ou “não falariam sobre nada” por não possuírem o discurso politicamente engajado e cristalino que havia sido adotado como o preferencial pelas comunidades artística e jornalística desde o apogeu do movimento tropicalista. Uma reportagem estrangeira, falada em inglês, mostra uma performance da canção “Negro Gato” na qual o cantor encontra-se em palco com Zezé Motta, alegando que os shows de Melodia seriam “exóticos”, recheados de canções sem significado lírico e alienadas dos movimentos por igualdade racial, chegando mesmo a dizer que as apresentações do artista seriam “induzidas por drogas”. “Todas as Melodias” apresenta esse e demais relatos que operam num racismo (por vezes nem tão) velado de maneira crua, fazendo com que os absurdos ditos acerca de um artista como Luiz Melodia, completamente embebidos em uma visão simplória e preconceituosa, exponham-se ao ridículo sozinhos quando apresentados ao espectador atual. O longa é discreto em sua denúncia, confiando no espectador para compreender o que está sendo transmitido, com sua distinção e seu julgamento próprios.

Por tudo o que põe em tela, “Todas as Melodias” é feliz em não ser um documentário tradicional e engessado em termos de linguagem, ainda que, em sua montagem, não entre de cabeça em um perfil mais ensaístico e menos didático. Existindo em algum lugar nesse meio-termo, é digno de nota em meio ao manancial de documentários sobre músicos que são uma constante no cinema brasileiro já há mais de vinte anos, muitos dos quais acabam saindo demasiadamente formulaicos. Se tem uma coisa que “Todas as Melodias” não é, é formulaico, fazendo assim jus ao artista que procura investigar, um homem que jamais foi formulaico em vida, em música e em comportamento, como foi Luiz Melodia.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a 24ª Mostra de Tiradentes. Para ir até a página principal da cobertura, clique aqui
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