Uma obra-prima. Não há meios-termos para este trabalho de Danny Boyle. Às vésperas da estreia de sua continuação, Trainspotting continua atual, mordaz, incômodo e instigante. Um equilíbrio perfeito entre direção, roteiro, elenco e aspectos técnicos como fotografia e montagem. Os questionamentos levantados desde o primeiro segundo ecoam no último, tornando o filme num ciclo perpétuo de prisão. Seja às drogas ou à própria sociedade.
O monólogo de abertura, quando Renton (Ewan McGregor) fala das “escolhas da vida”, que ele optou por abrir mão para poder ser um viciado em heroína “livre”, exibe uma contradição óbvia numa das drogas com maior potencial de dependência ser responsável por libertar alguém. Mas contém outra contradição, esta menos evidente: a liberdade de quem “escolhe a vida” não é mais do que uma ilusão. Logo, se Renton é um viciado em heroína, o resto da sociedade não seria viciada em uma vida previsível? Qual dos vícios é pior?
Quando Renton decide abandonar a heroína (ele faz isso bastante), conversa com o traficante “Madre Superiora” (Peter Mullan), que faz pouco caso. Repare que, apesar de ambos estarem expostos à mesma fonte de luz, apenas Renton está vermelho. Esta cor é um símbolo de virilidade e poder. Esta decisão intempestiva foi tomada durante uma “onda” de heroína, e este vermelho indica o quanto ele está influenciado pela droga. Mas Madre não: ele não é um viciado, ele apenas vende. Para ele, heroína não é diversão, mas trabalho. Ela não o afeta.
A fotografia em Trainspotting sempre acrescenta camadas de compreensão para o filme não perder seu ritmo frenético com explicações. No começo do longa, praticamente todos os planos dos protagonistas são contra-plongées – câmera abaixo da linha dos olhos, apontando para cima – que os elevam praticamente à condição de deuses. Conforme a história avança, a câmera fica na linha dos olhos dos personagens, refletindo sua ascensão ou queda. O poder de uma câmera no chão filmando uma pessoa caída é devastador.
Outro elemento que dá dinamismo a Trainspotting é a montagem. Com uma música eletrônica animada e cortes rápidos, o filme conta como foram as noites de Renton, Spud (Ewen Bremmer) e Tommy (Kevin McKidd). O uso de rimas visuais e cortes onde a ação continua em um cenário diferente também ajudam o expectador a preencher as lacunas e acompanhar múltiplas narrativas simultaneamente.
As narrativas em Trainspotting escondem seu peso dramático numa representação caricata. A desgraça de Tommy, provocada por Renton sem absolutamente nenhum motivo; a total falta de controle de Spug devido ao seu vício; a psicopatia de Begbie (Robert Carlyle), o único que não usa heroína; Sick Boy (Jonny Lee Miller), que perdeu parte de sua humanidade em um evento traumático.
Não apenas uma crítica à sociedade, Trainspotting é uma história de personagens. Sua conclusão, assim como a introdução, é propositalmente paradoxal e contraditória. O mal que é feito para viabilizar o bem, mas que não é feito por ninguém com intenções nobres.
Renton, segundo ele mesmo, é apenas uma “pessoa má”.