Em certo momento de “Trama Fantasma”, o protagonista tenta seduzir uma jovem garçonete. Após um jantar, ele a leva para sua casa. Depois da expectativa criada pela latente tensão sexual entre a dupla – implícita na trilha e nos planos-detalhes, Paul Thomas Anderson subverte totalmente o que se espera da cena. O homem não acaricia mais o corpo da mulher, mas saca uma fita métrica e tira suas medidas. Não há personagens se despindo para fazer sexo, mas vestindo novas roupas para testar as medidas. O romantismo cede lugar a um tratamento objetificador, no qual a mulher torna-se um reles manequim.
Mas as curiosidades da cena não param por aí. Em poucos momentos, a irmã do homem chega ao local, e o que já parecia um encontro romântico sinistro logo se revela uma armadilha – nos moldes de “Uma Mulher Diferente”, de Robert Altman. Uma busca por amor se revela uma busca por uma musa que sirva para o estilista desenhar seus vestidos. E, para dar brilhantismo à obra, a mulher embarca no jogo. Apesar de um esperado incômodo inicial, rapidamente Alma, a garçonete vivida por Vicky Krieps, se adapta e se torna uma engrenagem do sistema.
Nessa cena reside o código narrativo de “Trama Fantasma”. O homem responsável pela armadilha é Reynolds Woodcock (o brilhante Daniel Day-Lewis), um renomado estilista. Woodcock inicia um relacionamento com Alma. Um relacionamento que desde o primeiro encontro mostra-se pouco ortodoxo. De um lado, um homem obsessivo, calculista e manipulador. Do outro, uma mulher desengonçada, mas que demonstra força, poder de sedução e intenção de “jogar o jogo”.
Paul Thomas Anderson permite várias leituras para sua obra. Talvez a mais interessante seja a da obsessão e da disputa por poder protagonizado por Reynolds e Alma. Enquanto o primeiro é, por seu status social, um personagem insuportavelmente arrogante e indiferente em relação às pessoas ao seu redor, a segunda constantemente luta pela atenção dele. O jogo de sedução e poder de Anderson é filmado com muitos planos fechados, close-ups e planos detalhe, o que além de conferir uma atmosfera hostil e sufocante para a trama, já que muitas vezes restringem e abafam o ponto de vista do espectador, também permite que o público perceba cada nuance das colossais atuações.
Se Day-Lewis se destaca e cria um personagem com características voyeur, com um Reynolds Woodcock que constantemente se cala – e mantém um olhar fixo e manipulador – e, por seu inabalável silêncio, transforma as tentativas de diálogos de outros personagens em monólogos, Vicky Krieps não fica atrás, navegando do inocente ao sedutor de forma que a psique de sua personagem torna-se indecifrável. O espectador nunca saberá quando a moça está sendo genuinamente inocente ou apenas vestindo uma máscara para facilitar seu relacionamento.
Com figuras tão complexas, “Trama Fantasma” aposta na dissonância entre elementos da forma do filme para provocar incômodo no espectador. A trilha de Jonny Greenwood (“Sangue Negro” e “O Mestre”), por exemplo, passeia do clássico ao jazz constantemente, mas em vários momentos faz uso de um arranjo extremamente agudo no violino por baixo do tema principal, o que imprime enorme desconforto.
Mas nem só a música de Greenwood cria incômodo. O visual deliberadamente pasteurizado cria um cenário falso, “plastificado”, onde a superficialidade esconde uma latente angústia para todos os personagens. Nisso, “Trama Fantasma” remete ao clássico “Barry Lyndon”, trazendo, além da fotografia que aposta em uma iluminação natural (seja ela realmente natural ou apenas traga uma ilusão de naturalidade) e diegética em boa parte da projeção, atuações que, em alguns momentos, são propositalmente mecânicas e hesitantes, ajudando a passar a sensação de que os personagens viverem em um ambiente de teatro, de farsa.
Observando esses elementos, é uma escolha lógica que “Trama Fantasma” valorize tanto sua direção de arte, figurinos e maquiagem. Afinal, toda a trama ocorre em um mundo baseado na estética. Reynolds é um renomado designer de vestidos, e as roupas criadas pelo protagonista ainda funcionam como alegorias de seus momentos. Quando, por exemplo, o protagonista adoece, paralelamente seu vestido precisa passar por reparos – e é interessante perceber como, a partir disso, é possível discorrer por horas sobre como a ocupação de Woodcock é uma metáfora para os “remendos” e feridas da vida.
Mas o interesse de Paul Thomas Anderson não é simplesmente criar um ambiente. “Trama Fantasma” não é um filme de atmosfera – como é o excelente “Vício Inerente” -, mas sim trabalhar a crescente obsessão de Reynolds e Alma – que se adaptam e se corrompem conforme se aproximam -, e a partir disso, mostrar com certo pessimismo e ironia a falência da estrutura social patriarcal. Com o relacionamento Woodcock e Alma, “Trama” consegue fazer um estudo sobre as convenções sociais relacionadas ao matrimônio. Sobre como, por mais opostas que sejam – em aspirações e personalidade -, duas pessoas podem transformar suas obsessões em ferramenta, e achar um meio de sobreviver na sociedade por meio de relacionamentos extremamente tóxicos.
Afinal, a toxicidade de Reynolds não é fator novo para Alma. A jovem garçonete, claro, se surpreende inicialmente, mas sempre aceita a personalidade tóxica e passivo-agressiva de Woodcock – até que, então, o parceiro a transforma. “Trama Fantasma” evolui a obsessão de seus personagens para uma patologia, elevando a compulsão do casal a um patamar no qual ambos beiram a psicopatia. É um filme de aparências, de montagem com cada corte planejado calculadamente para criar um mundo que, ao mesmo tempo, é dissonante e esteticamente perfeito. Como se, a qualquer momento, o relacionamento entre Alma e Reynolds pudesse desfiar.
Esse mundo, porém, nunca recebe o espectador de braços abertos. É um mundo fechado, que Paul Thomas Anderson nos permite ter apenas pequenos vislumbres por meio das memórias de Alma, guiadas por sua narração. Talvez por isso boa parte dos diálogos tenha, no canto dos enquadramentos, um ombro ou até um corrimão da escada da casa separando os atores do espectador. “Trama Fantasma” traz um grupo de personagens de moralidade questionável e que, aos poucos, destecem qualquer empatia que possam ter conquistado à priori.
É um universo de figuras bem específicas e egocêntricas, que em momento algum demonstram algum esforço para se tornarem mais humanas. “Trama Fantasma” traz um homem que desenvolve uma obsessão para mascarar uma ferida e uma mulher que se adequa às exigências desse homem a fim de se encaixar. É um trato de cumplicidade costurado à mão. Uma disputa por poder que encontra num companheirismo tóxico um meio-termo que agrade às partes. É uma obra de arte provocativa e deliberadamente incômoda, tanto por sua ideia central – o fracasso do patriarcado como modelo de sociedade -, quanto por sua forma cinematográfica. Em outras palavras: arte da melhor qualidade.