É incrível que “Um Dia Quente de Verão” tenha nascido da notícia de um crime. O assassinato de uma estudante por seu colega de classe. Algo como a matriz de um cinema policial barato, que se alimenta da imprensa marrom para contar histórias sensacionalistas – o que não significa necessariamente maus filmes, vide o exemplo brasileiro, dos mais convencionais, mas politicamente poderosos, “Assalto ao Trem Pagador” (1962) e “O Sequestro” (1981) à apropriação autoconsciente e debochada do genial “O Bandido da Luz Vermelha” (1968). Mas “Um Dia Quente de Verão” não é nada disso. Edward Yang usa o crime cometido em 1961 para se aproximar da história recente de seu país e de um momento de formação de sua geração.
O assassinato de Ming (Lisa Yang) por Xiao Si’r (Chen Chang) é o ponto de chegada da narrativa, mas a condução não é nada teleológica. Na verdade, o diretor faz o movimento inverso: ao invés de contextualizar para explicar o fato, buscando um olhar sociológico que extrapole a superficialidade de uma notícia na coluna policial, ele se mostra bem mais interessado na reconstrução de um momento histórico definidor para Taiwan, então um jovem país nascido da derrota dos nacionalistas para os comunistas na guerra civil chinesa. O retorno ao episódio marcante de sua adolescência é uma porta de entrada para esse passado.
A vida em Taipei entre 1959 e 1961 que emerge em “Um Dia Quente de Verão” é, antes de tudo, pontuada pelo militarismo. Ainda que o filme não se dedique propriamente a destrinchar esse elemento em sua história, são muitos os momentos em que soldados invadem o quadro, marchando ou se deslocando em veículos militares. A derrota para os comunistas na China continental se refletiu na criação de um regime autoritário em Taiwan, encabeçada pelo general Chiang Kai-Shek e seu partido nacionalista, o Kuomintang. Aqui a mise en scène moderna de Yang, alicerçada sobre planos abertos e longos, privilegiam esse tipo de irrupção na cena, que nunca é violenta (desconsiderada, claro, a brutalidade carregada pela mera presença militar numa paisagem), aparentando uma integração orgânica à realidade daquela sociedade.
Isso se manifesta de alguma forma no próprio comportamento do protagonista e dos que o cercam. Eles se organizam em gangues, apresentam um espírito de grupo bem definido e estão sempre prontos para o confronto físico com seus rivais (na verdade seus iguais, já que também adolescentes taiwaneses de classe média, o que evoca o fantasma da guerra civil). A obsessão pelo conflito tem presença perene no tecido social e parece alimentar algum tipo de compensação pelo fracasso de 1949. “Um Dia Quente de Verão” fala de um país de identidade em crise, nascido do trauma da derrota e que se identificou, de forma cada vez mais quixotesca, como sede do verdadeiro governo chinês.
Edward Yang, no entanto, evita explicitar analogias totalizantes como essa. Seu cinema é dedicado à evocação da ambiência de um momento passado, por meio de um realismo delicado. A amplitude das composições visuais e a duração dos planos dão a “Um Dia Quente de Verão” uma textura de realidade impressionante. O sentido realista aqui não é o da brutalidade e da secura, da câmera nervosa e da intensidade dramática acentuada, mas o da observação paciente e fluida, do olhar aberto ao mundo que cerca os personagens principais.
A cena do imediato pós-assassinato é um belo exemplo disso: Yang mantém um plano geral do mercado de rua enquanto Xiao Si’r se desespera diante do corpo caído e ensanguentado de Ming, ao se dar conta do que acabou de fazer; as pessoas próximas vão, aos poucos, percebendo que há algo estranho, mas reagem com discrição, tentando entender o ocorrido. Se o evento é, em si, extremo, matéria-prima perfeita para o melodrama, sua concretização imagética é distanciada e atenta ao todo que compõe a cena. Yang condensa no quadro ações simultâneas, que, num cinema mais convencional, seriam provavelmente divididas em pequenos momentos dramáticos estruturados numa cadeia causal.
Desacelerado e longo (são quase quatro horas de duração), “Um Dia Quente de Verão” consegue se conectar com o ritmo da vida num tempo em que Taipei ainda não era a metrópole moderna e barulhenta de outros filmes de Yang, como as obras-primas “História de Taipei” (1985) e “Os Terroristas” (1986). Um dos maiores méritos do novo cinema taiwanês é essa capacidade de capturar momentos históricos, tornando-os palpáveis, sejam eles parte de um presente modernizador, de aceleração temporal e vazio existencial, ou do passado formador de uma geração, atravessado por um afeto memorial e por certo trauma decorrente da violência política.