Plano Aberto

Um Dia

Filmes que lidam com a rotina materna são uma constante no cinema mundial. Em 2018, por exemplo, fomos agraciados com o dócil “Tully”, obra protagonizada por Charlize Theron que fala sobre os desafios da maternidade com uma narrativa que brinca com a própria realidade. Agora, com “Um Dia”, temos a visão húngara de uma situação parecida, mas cinematograficamente tratada de forma praticamente oposta. A diretora e roteirista estreante Zsófia Szilágyi acompanha, pelo período de um dia, a rotina de Anne, uma mãe atarefada. Há uma diferença enorme entre “Tully” e “Um Dia”. Enquanto o filme americano aposta no drama e em um roteiro de reviravoltas para conquistar seu espectador com uma fórmula de cinema mais ousada, o húngaro nos joga em uma realidade que, por si só, já é sufocante e narrativamente cativante.

“Um Dia”, portanto, é um filme que, mesmo ficcional, nega os artifícios típicos da ficção. Não há grandes conflitos, não há discussões ou trajetórias com desenvolvimento e conclusão. Há apenas a realidade, escrita, interpretada, fotografada, filmada e montada de maneira crua. Os personagens, inclusive, não vivem nenhum fato novo em suas vidas; tanto a crise do casamento da protagonista, Anna, quanto sua dificuldade para lidar com três crianças e um emprego que muito exige dela parecem ser fatores já intrínsecos à sua rotina. 

É coerente, então, que a construção visual de “Um Dia” crie um cenário tão cinzento – é como se a desgastante vida de Anna estivesse, aos poucos, sugando as cores de sua vida. A obra mantém uma iluminação baixa por boa parte da projeção, fazendo com que a protagonista circule por ambientes sombrios e densos, além de bagunçados. E, falando em bagunça, há de se destacar a organização dos elementos no ambiente, que tem roupas, livros e móveis fora do lugar de forma a construir um cenário tão caótico que, em certos momentos, os próprios personagens se perdem no meio do desarranjo.

Inteligentemente, Szilágyi utiliza um trabalho de câmera com características documentais. Constantemente manejando a câmera sem um tripé, a diretora estreante faz com que boa parte dos planos de “Um Dia” sejam irregulares e trêmulos, permitindo que o espectador perceba a insegurança de viver uma vida consumida por terceiros. É também elogiável o fato de o filme, quando nos mostra a personagem em raros momentos de isolamento – como quando acaba de deixar as crianças em algum lugar e volta sozinha de carro para o trabalho – nunca apostar em rupturas emocionais. Na verdade, Anna encara seus afazeres de forma tão mecanizada que parece estar anestesiada.

Há outras escolhas igualmente interessantes, como a montagem que corta discussões ou diálogos corriqueiros de forma abrupta para evidenciar quão efêmeros e comuns eles se tornaram, ou a regulagem de uma profundidade de campo curta, isto é, focando apenas nos elementos que estão mais próximos às lentes da câmera, o que ajuda a destacar a protagonista do cenário e dos demais personagens. Essa segunda escolha permite que o distanciamento entre Anna e outras pessoas de fora de sua rotina seja perceptível visualmente. Além disso, a própria protagonista é constantemente desfocada ou tem sua imagem atravessada por reflexos projetados em vidros e janelas, o que permite que a obra faça a sugestão de que há um lento processo de perda de individualidade – algo bem coerente em uma obra sobre uma mulher que vive em função de sua família e seu trabalho.

“Um Dia” é um clássico caso de filme que pouco fala e muito diz. Capaz de mergulhar seu espectador em uma trama tão realista quanto intensa, a obra de estréia de Zsófia Szilágyi nos mantém aflitos não pela expectativa de que algo grandioso vá acontecer, mas pela certeza de que estamos assistindo a algo tão intenso e desgastante, e que, para aquela personagem, corresponde a apenas um dia de sua rotina. É por apostar na realidade e abrir mão dos atalhos da ficção que “Um Dia” consegue ser tão bom e verdadeiro.

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