Plano Aberto

Uma Mulher Fantástica

Raros são os filmes que, além de apresentarem predicados narrativos notáveis, mostram-se importantes por questões alheias à arte. Uma Mulher Fantástica é concebido já com essa estatura – uma obra exemplar tecnicamente e socialmente. Escrito e dirigido pelo chileno Sebastián Lelio, o longa acompanha o luto de uma mulher transexual que acaba de perder seu namorado. O grande diferencial do filme é, além de abordar os preconceitos do dia-a-dia que a mulher trans precisa enfrentar, escalar uma atriz transexual, que incorpora as dores de seu papel da forma humana e natural, proporcionando uma experiência extremamente realista e impactante.

Não há um complexo arco dramático ou um grande objetivo a ser alcançado. Uma Mulher Fantástica é um recorte realista e intimista, uma exposição de situações pelas quais qualquer mulher trans passa em sua rotina, dos preconceitos velados aos mais violentos, e até a omissão que torna algumas pessoas cúmplices de atos transfóbicos. No centro disso tudo, está Marina Vidal, cantora que, enquanto tenta superar a perda de seu amado Orlando, precisa lidar com o ódio de seus familiares preconceituosos e a insensibilidade das autoridades que cuidam dos desdobramentos legais do falecimento de Orlando.

A fim de expor o desgaste de Marina, planos que retratam a protagonista caminhando pelas ruas de Santiago são uma constante na narrativa do filme. Nessas cenas, Marina é sempre filmada de perfil, andando para os cantos do quadro. Tais caminhadas sempre sucedem momentos nos quais a personagem sofre algum tipo de preconceito, e são importantes para mostrar a força psicológica de Marina. Mesmo que humilhada, Marina sempre continua seguindo em frente, sem nunca desmoronar. Em tais cenas, a atuação de Daniela Vega é essencial, por trazer o olhar fixo e pesado da personagem, a fim de mostrar que, por trás da inexorável vontade de seguir em frente, há um ser humano fragilizado, abatido. Marina é, para a sociedade preconceituosa que a cerca e a rejeita, um saco de pancadas, em relação similar à da protagonista com a bola de socar que guarda em seu apartamento.

Ainda torna Uma Mulher Fantástica mais rico o fato de o roteiro fazer questão de mostrar como Marina não vive em função de sua sexualidade, apenas tenta sobreviver em um mundo extremamente hostil – que chega a ter sua hostilidade materializada em cenas como a aquela em que o vento tenta impedir que a protagonista caminhe na rua. O desejo da personagem é apenas despedir-se de Orlando com alguma dignidade para, então, tocar sua vida de artista – a protagonista é cantora. A obra, portanto, é um eficiente retrato de preconceitos corriqueiros, mas vai além e mostra como tais preconceitos impedem que a mulher trans possa dar seguimento à sua rotina – a protagonista passa tanto tempo lidando com questões policiais, burocráticas e pessoais que mal encontra tempo para praticar seu canto.

Uma Mulher Fantástica é uma obra de sutilezas, que encontra na força dos olhares e expressões de sua protagonista o impacto dramático necessário para que o público seja conquistado. É um filme capaz de falar por imagens. Não há necessidade de dizer que a personagem sente falta de seu falecido namorado: basta um sutil movimento de câmera que expõe o vazio deixado no banco do carro, bem como não é preciso que aqueles que (supostamente) não possuem preconceito façam algo para serem prejudiciais às mulheres trans: basta que se calem e não ajam em sua defesa. Ao entender que o silêncio pode ser sufocante, Lelio obtém êxito ao retratar um mundo hostil e estreito, criando uma obra de arte realista e intimista, que, de quebra, nos motiva a pelo menos tentarmos criar um mundo melhor e mais inclusivo para as próximas gerações.

Se pensarmos sobre o quanto a carreira de cantora de Marina é prejudicada pelo preconceito que a cerca – algo que até deveria ser mais explorado pelo filme a fim de fortalecer o arco dramático -, é lamentavelmente simples constatarmos que a realidade não é diferente. Quantas obras de arte deixam existir ou ter destaque pelo fato de os autores precisarem, antes de as conceber, lutar pela própria sobrevivência?

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