Revisitar a história pelo cinema é algo comum. Muitas vezes, filmes buscam retratar exatamente como um fato histórico ocorreu; já em outras, o cinema busca subverter a história e contá-la à sua maneira. Exercícios de revisionismos históricos são inúmeros nesta arte e sua magia é capaz dar vida a momentos que não aconteceram. É o caso de Era Uma Vez em… Hollywood, que deixa Sharon Tate viver para ter seu filho ou de Infiltrado na Klan, que permite que Ron Stallworth ligue para David Duke e deboche da imbecilidade do líder da Ku Klux Klan.
Apoiada nesta ideia de reimaginar a história, Regina King relembra um encontro entre Cassius Clay/Muhammad Ali (Eli Goree), Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) e Jim Brown (Aldis Hodge) em Uma Noite em Miami… Embora relatos digam que este encontro de fato ocorreu, nunca se soube o que foi conversado entre estes quatro membros históricos do movimento negro estadunidense. Com isso, o filme de Regina King se encarrega de projetar como pode ter se dado esta reunião. Neste exercício imaginativo, King estabelece personalidades distintas para os quatro personagens de seu filme e os encarrega de dialogar acerca de seus papeis diante do movimento negro dos anos 60.
O jovem Clay, que acabara de se tornar campeão mundial pela primeira vez, reluta ingressar no islamismo e mudar seu nome para Muhammadi Ali, enquanto Malcolm X, mais velho e sereno, prega para que seus irmãos sejam mais incisivos em seus posicionamentos a favor da luta por direitos civis. Em contrapartida, Cooke, musicista bem sucedido e dono de uma gravadora, se contenta em produzir conteúdos brandos sem tocar na temática da igualdade racial, mesmo que seus shows no Copacabana não agradem muito os brancos. Mediando isto tudo, Jim Brown é a figura conciliadora, que trata de ouvir ambos os lados e se divide entre a carreira na NFL e o sonho de ser ator. Sem priorizar nenhum personagem, King dá a cada um deles momentos de brilho e encarrega que os debates cheios de falas fortes carreguem o filme.
Por ter seu roteiro baseado em uma peça teatral, Uma Noite em Miami… poderia muito bem cair na problemática de se prender a um único cenário e render poucos momentos cinematográficos, dependendo demais de seu texto e interpretações. No entanto, King consegue driblar este empecilho ao introduzir eventos que obrigam seus personagens a migrar para outros cenários. Além disso, tanto na cena final, quanto na inicial, King preza por uma narrativa mais biográfica, mostrando seus personagens antes e depois da noite do filme em momentos e locais diferentes. Estas pequenas alterações de cenários dão dinamismo ao filme, enquanto o cenário principal, o quarto de hotel de Malcolm X, se encarrega de enfatizar a sensação de aprisionamento em um filme que muito fala sobre busca pela liberdade.
A liberdade é o tema central para o filme. Complexa, esta busca por libertação é quase paradoxal, pois os embates de pontos de vista parecem não chegar a um consenso de qual é a melhor maneira para obtê-la. O filme não parece interessado em tirar respostas, muito pelo contrário, seu maior interesse é em expor alternativas. Não há juízo de valor para dizer qual personagem está mais certo que o outro. Os embates e os discursos até são capazes de atingir e mudá-los, mas não há um apontamento claro para uma ideologia.
Apesar do filme tentar imaginar o que aconteceu dentro do quarto de Malcolm X nesta noite de Miami, seu momento de mais força é quando ele recorre aos fatos. Regina King, em uma manobra ousada, não imagina novos rumos para seus personagens após o encontro, em vez disso, ela finaliza seu filme recriando exatamente como a história se sucedeu. Ao realizar isto, a diretora expõe que pouco importa o quão edificante ou banal possa ter sido aquela noite, os resultados seriam os mesmos graças ao Estado opressor estadunidense. Por mais forte que Cooke tenha saído das conversas com Malcolm e tenha cedido um espaço para o movimento negro em suas composições, a casa de seu amigo ainda seria incendiada e o compositor logo depois seria assassinado. O racismo estrutural não se importa com o que aconteceu naquela noite de Miami e, no fim das contas, imaginar o que aconteceu neste dia é um exercício em vão.
Mesmo assim, King deixa uma nota esperançosa, pois a celebração de maneira inspiracional de seus personagens serve de como um espelho e um chamado para despertar nos dias atuais. A diretora quer mostrar que estas figuras, embora distintas, tinham um propósito de vida e foram capazes de pavimentar os direitos obtidos hoje em dia. Se o cinema negro consegue produzir filmes como Uma Noite em Miami…, esta noite teve uma pequena parcela de responsabilidade nisso. É uma narrativa forte, que demonstra que qualquer conversa naquele local não mudaria o futuro, mas que mira para o presente em busca de dias melhores.