Segundo o dicionário, inconveniente é aquele que desagrada pela imprevisibilidade, que incomoda. Uma pessoa inconveniente atrapalha. Uma Verdade Mais Inconveniente, continuação direta do documentário de 2006, traz dados alarmantes sobre o avanço do aquecimento global na última década. Oferece uma solução, mas nem ela e nem Al Gore, seu mentor/garoto-propaganda, parecem bons o bastante para a tarefa mais difícil: convencer aqueles que não querem ser convencidos.
A discussão sobre o aquecimento global deveria superar divergências ideológicas. Não importa se o indivíduo é favorável a programas governamentais para a redistribuição de renda ou se quer comprar pão com bitcoin, ou mesmo se é favorável ou não ao aborto: é bem razoável supor que ninguém deseja viver naquele filme protagonizado pelo Kevin Costner. O que torna o debate a respeito do clima uma briga de foice enferrujada num quarto escuro é a falsa ideia de que o aquecimento global, em si, é uma falácia. Esses negacionistas deveriam ser o foco de Uma Verdade Mais Inconveniente. Mas Al Gore, como tantos outros ativistas sociais, se vê preso na armadilha do caminho mais fácil e prega para convertidos.
Não há muito o que falar sobre os dados apresentados por Gore. Após assistir ao filme, procure as fontes citadas, como o hotsite da NASA dedicado a expor, em tempo real, os “sinais vitais” do planeta. Se a “conversa de cientista” não o convencer, deixe que as imagens falem por si. A exemplo do seu antecessor, Uma Verdade Mais Inconveniente aposta numa didática de mostrar e contar (“show and tell”), de forma a tornar palpáveis os conceitos distantes como o aumento no número de dias com temperaturas acima da média, ano após ano.
É numa viagem para a Groenlândia para ver o efeito do aquecimento global no meio ambiente que o documentário tem seu melhor momento cinematográfico: ao explicar uma complexa reação em cadeia que faz o derretimento de uma calota polar ser “ejetada” para o mar, onde derreterá ainda mais e contribuirá na elevação do nível dos oceanos, a fotografia faz uma transição de planos próximos e closes para um grande plano geral, mostrando uma geleira desolada, com um veio de água tão azul correndo por entre suas rachaduras que torna o contraste evidente. Há um problema naquele cenário, e só sendo cego para não ver.
Mas não há pior cego do que quem não quer ver, já dizia o ditado. E não há um esforço real para desconstruir narrativas que neguem o aquecimento global. Bonni Cohen e Jon Shenk, que assinam como diretores do documentário, apostam em desmoralizações rasteiras de figuras como Donald Trump. No trecho destacado de uma entrevista dada por ele quando ainda era pré-candidato à Presidência dos Estados Unidos, fala absurdos sobre a inviabilidade econômica de células de energia solar, logo após uma detalhada explicação de como as células não apenas são viáveis, como mais baratas do que energia fóssil.
Trump, que já publicou em seu Twitter o devaneio do aquecimento global ser “uma invenção chinesa para tirar a competitividade da indústria americana”, dispensa apresentações. Mas soa, em certo nível, arrogante da parte de Al Gore meramente expor sua estupidez. Logo na abertura de Uma Verdade Mais Inconveniente, locuções em off de jornalistas criticando o “alarmismo sensacionalista” de Gore em seu primeiro documentário são sobrepostas a catástrofes climáticas. O tom geral é de um grande “eu bem que avisei”, seguido por um “estou cansado de lutar esta luta sozinho”.
A organização de Al Gore, a Climate Reality, tem um programa de treinamento para “líderes”. É um workshop voltado para ensinar aos alunos como conscientizar a sociedade e pressionar políticos e empresas a adotarem práticas sustentáveis. A iniciativa é louvável, mas também é um prato cheio para críticas sobre a monetização do aquecimento global. Em seu site, não há nenhuma informação sobre o custo de matrícula. Não é errado cobrar por um curso, mas essa é uma potencial brecha para deslegitimar toda a retórica de Uma Verdade Mais Inconveniente, colocando-o na vala comum da promoção pessoal. Tudo neste documentário deveria girar em torno disso: convencer quem ainda não acredita. Em vez disso, prefere motivar os que já acreditam a fazer alguma coisa.
Há uma sombra sobre Al Gore durante a projeção que o mesmo salienta. A derrota na eleição presidencial de 2000 ainda dói. Ele vende a imagem do homem que sofreu um baque e soube se reinventar, mas repetidas vezes, volta a este tema. Pinta quadros do Partido Republicano como “vilões” – faz o mesmo com o governo da Índia – e se posiciona como uma espécie de cavaleiro solitário, pessoalmente responsável por resolver os problemas climáticos do planeta. O mal do qual sofre Al Gore é comum entre acadêmicos. É a ideia de que a verdade basta em si. De que não há a necessidade de conquistar os descrentes para o seu lado, tarefa que ficará a cargo do tempo.
Em tempos nos quais as pessoas estão cansadas de especialistas, esse é um comportamento temerário. O bom senso diz que todos deveríamos fazer o que fosse necessário para preservar a Terra e, consequentemente, a espécie humana. Mas a pós-verdade oferece “fatos alternativos” para todos os gostos: pessoas que não tenham o interesse de acreditar no aquecimento global serão alimentadas com conteúdo que legitime seu discurso. O papel de figuras como Al Gore não é despejar dados e contar sua história particular de superação para surgir dez anos depois com um “eu não disse?”, mas quebrar esta barreira de negação e convencer como um igual, não uma figura messiânica pregando numa montanha. Multinacionais são especialistas em convencer massas de que seus interesses não visam o lucro, mas o “bem comum”. E é por isso que o mundo está indo para o buraco.
Al Gore conclui seu novo documentário com um pedido: “seja inconveniente”. Convida para o seu workshop. Sugere hashtag nas redes sociais. Mas, como já dizia Theodor Adorno, “a repetição cega e rapidamente difundida de palavras designadas liga a publicidade à palavra de ordem totalitária. (…) Inúmeras pessoas usam palavras e locuções que elas não compreendem mais de todo”. Defender o meio ambiente não é mais “inconveniente”, pois foi absorvido pelo establishment. A hashtag de Gore provavelmente será trending topic do Twitter. Mas não é isso que vai salvar o mundo.