Plano Aberto

Uma Vida Oculta

O interesse pela definição de liberdade, presente em todo o cinema de Terrence Malick, retorna em “Uma Vida Oculta”. Mas enquanto a trinca de filmes anteriores do diretor, “Amor Pleno” (2013), “Cavaleiro de Copas” (2015) e “De Canção em Canção” (2017), pensava o tema a partir das relações afetivas e lidando com múltiplas vozes, esse novo mira na vida sob o nazismo, a partir das escolhas de Franz Jäggerstätter (August Diehl), objetor de consciência austríaco perseguido pelo regime de Hitler. Liberdade de crença e de ação, associadas aqui também à dimensão física: o quanto a condição de cativo torna um homem menos livre, quando ele está em harmonia com o que considera justo? Essa pergunta atravessa o filme.

Malick enxerga na resistência de Jäggerstätter ao nazismo o suprassumo da luta pela liberdade. Uma ditadura sanguinária contra um sujeito que advoga simplesmente o direito de não prestar juramento ao líder político da ocasião. O embate entre o totalizante e o indivíduo. O diretor inicia “Uma Vida Oculta” com cenas do documentário “O Triunfo da Vontade” (1935), de Leni Riefenstahl. Para além do sentido de contextualização da narrativa que as imagens ganham, há o fato de que esse é um filme sobre um congresso do Partido Nazista, no qual sobressaem a liderança inconteste de Hitler e o espetáculo das massas. Após esse prólogo, Malick gruda sua câmera em Jäggerstätter e, com menos frequência, na esposa desse, Fani (Valerie Pachner); interessam-lhe esse homem e essa mulher.

Aqui fica claro como o diretor, frequentemente acusado de se repetir num estilo enfadonho, coaduna forma e conteúdo. Em “Além da Linha Vermelha” (1998), sua obra-prima, Malick estilhaçou a narrativa, contando a experiência da Segunda Guerra Mundial, uma guerra total, por meio das muitas vozes presentes num campo de batalha. “Uma Vida Oculta” se passa no mesmo período, mas para a consecução de seus objetivos é fundamental a prevalência do olhar individual. Por isso, só Hans e Fani estão presentes na narração em off. No fim das contas, reduzir o cinema de Malick a uma suposta repetição por causa de sua estética marcada e facilmente identificável é algo como acusar José Saramago de contar sempre a mesma história em seus romances.

É interessante, aliás, como o diretor desmitifica em “Uma Vida Oculta” certo senso comum sobre o que seriam seus últimos filmes. Talvez desde “A Árvore da Vida” (2011), ele vem sendo associado a um cinema supostamente composto por belas imagens, perfeitos wallpapers de computador, combinadas a reflexões existencialistas superficiais. A problematização desse tipo de leitura já se dá na referida articulação impecável entre forma e conteúdo. E avança até a construção visual proposta: há sim imagens muito bonitas no filme, sobretudo em razão das paisagens austríacas capturadas em planos abertos, mas frequentemente o diretor aposta numa distorção excessiva dos atores e objetos de cena, através de contra-plongées expressivos e do uso de lentes grandes angulares. E, de novo, não se tratam de escolhas gratuitas, já que a presença desses recursos se acentua conforme a situação de opressão sobre o protagonista ganha força. Além disso, retorna aqui uma instabilidade do plano característica do cinema recente de Malick, que cria uma sensação de fluxo, como se o mundo a ser capturado pelo filme estivesse sempre escapando. São poucos os momentos em que a câmera permanece estática, enquadrando com precisão.

De toda forma, é justo dizer que “Uma Vida Oculta” é o retorno de Malick à forma primorosa demonstrada pela última vez em “A Árvore da Vida” – ainda que nenhum dos filmes que vieram depois seja exatamente ruim. O acerto aqui se dá sobretudo pelo diretor ter encontrado uma história perfeitamente propícia a seus questionamentos existenciais. Havia alguma tensão, nem sempre bem resolvida, entre o universo mundano principalmente de “Cavaleiro de Copas” e “De Canção em Canção” e o abstracionismo do olhar de Malick, frequentemente moldado pela busca do homem por Deus na natureza. Franz Jäggerstätter, por outro lado, é o instrumento ideal para a ascese temática e estética almejada pelo cinema do diretor.

Não à toa, “Uma Vida Oculta” se sai bem melhor que “Até o Último Homem” (2016), de Mel Gibson, também sobre um soldado da Segunda Guerra objetor de consciência, no esforço por articular a fé inabalável de um homem à brutalidade dos tempos de guerra. Para Gibson, a violência é o objetivo final, o ponto de chegada de seu filme. Para Malick, a fé de Jäggerstätter apascenta a própria narrativa. Conforme o protagonista adquire convicção de sua postura perante o assédio das autoridades nazistas, as torturas que sofre perdem impacto dramático, se tornam parte de uma rotina a ser inevitavelmente superada. Liberdade, enfim, diante da execução, mesmo com toda a dor por deixar para trás familiares amados. Mas, diferentemente de William Wallace em “Coração Valente” (1995), outro filme de Gibson, não há grito inspirador em meio a suplícios terríveis. A luta de Jäggerstätter é íntima, espiritual, não pretende mobilizar multidões. Ao personagem, em sua cena derradeira, basta um olhar resignado. Ainda assim, ele inspira, sobretudo por ser alguém que, nos termos de Albert Camus, num mundo de pragas e vítimas, faz o possível para se recusar a ficar do lado das pragas.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2019. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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