Ao filmar parte do massacre perpetrado por um militante de extrema-direita na ilha norueguesa de Utøya, em 2011, “Utøya – 22 de Julho”, de Erik Poppe, conseguiu reunir em si uma série de controvérsias sobre representação cinematográfica da violência. A começar pela própria decisão de encenar essa tragédia, que, enquadrada em convenções narrativas e dramatúrgicas, poderia perder sua dimensão única, inapreensível, já que concretização de um horror absoluto só experimentado pelas vítimas. A referência imediata aqui é o Holocausto judaico e o debate a respeito da possibilidade de dramatizá-lo ou não, materializado nos polos “Shoah” (1985), de Claude Lanzmann, composto exclusivamente por depoimentos de sobreviventes do genocídio nazista e de especialistas no tema, e “A Lista de Schindler” (1993), de Steven Spielberg, drama histórico realista, mas que frequentemente recorre a artifícios melodramáticos para conduzir as emoções espectatoriais.
Nessa analogia com o Holocausto, no entanto, “Utøya – 22 de Julho” está mais próximo de “O Filho de Saul” (2015), de László Nemes. Ambos os filmes buscam um tipo de registro ultrarrealista, de mergulho do espectador na experiência de estar em meio ao horror. Nemes gruda sua câmera em Saul Ausländer (Géza Röhrig), um sonderkommando, prisioneiro judeu responsável por conduzir seus iguais para a morte. Poppe recorre a procedimento semelhante, acompanhando, quase em primeira pessoa, a jovem Kaja (Andrea Berntzen): a câmera permanece sempre próxima à personagem, seguindo seus passos pela ilha de Utøya, tentando desesperadamente escapar do assassino.
Construído quase todo num único plano-sequência (as exceções são os vídeos de segurança exibidos na abertura), o filme hiperestetiza o massacre de 68 pessoas. Ao transformar sua protagonista numa espécie de avatar do espectador, posto, através dela, numa situação limite com a “missão” de sobreviver, o diretor gamefica a narrativa. Se Jacques Rivette denunciou a falta de ética de um único e pequeno movimento de câmera no momento da morte de uma personagem judia em “Kapò” (1960), de Gillo Pontecorvo, o que dizer de “Utøya – 22 de Julho”? Vale ressaltar ainda a dimensão artificial dessa experiência, absolutamente controlada, ensaiada, em nada realmente semelhante ao caos instalado em Utøya naquele dia 22 de Julho. Viria daí parte da impossibilidade e inadequação da encenação de eventos como esse, base das escolhas de Lanzmann em “Shoah”. Não à toa, um dos momentos mais poderosos de “Utøya – 22 de Julho” se dá quando o inesperado intervém, na presença indesejada de um inseto no corpo agonizante de uma jovem baleada.
Mas é claro que cinema é, em si, artifício. A mera opção por um tema já significa de alguma forma tentar reproduzir uma realidade ausente, inatingível em sua totalidade. Mesmo “Shoah” recorre à encenação, na cena em que Lanzmann pede a um sobrevivente dos campos de extermínio nazistas que repita para a câmera o passo a passo de sua atuação como cabeleireiro de prisioneiros à beira da morte. No caso do massacre de Utøya, aceita a decisão de se fazer um filme ficcional a respeito, cabe questionar a eficiência do resultado no sentido de produzir reflexão sobre a dimensão abominável do ocorrido. Trata-se, afinal, de um atentado executado por alguém que defende valores políticos emergentes no mundo contemporâneo, já bastante próximos do poder em alguns países.
E “Utøya – 22 de Julho” é bem-sucedido nesse sentido. O esforço por reproduzir o desespero dos jovens atacados sem jamais abandoná-los, aderindo totalmente à sua visão do evento, gera uma empatia devastadora e uma absoluta incompreensão das razões para atos de tamanha crueldade. Enquanto Paul Greengrass, em “22 de Julho”, filme burocrático sobre o mesmo tema produzido pela Netflix, gasta tempo apresentando Anders Behring Breivik (interpretado por Anders Danielsen Lie), suas crenças políticas e cada etapa preparatória dos atentados, por vezes privilegiando o ponto de vista do assassino como condutor da narrativa, Poppe reduz Breivik a uma presença nebulosa, quase nunca realmente enquadrada pela câmera. Sem rosto, ele é a concretização do puro ódio.
É verdade que algo se perde nesse esvaziamento político do terrorista de extrema-direita, que, por exemplo, acusava suas vítimas de “marxistas” antes de assassiná-las e, no tribunal, fez a infame saudação nazista. Greengrass tem o mérito de explicitar a ideologia por trás dos atos de Breivik, mas o faz num formato desgastado de drama televisivo de superação individual do trauma, com uma mensagem edificante no final que também enfraquece a representação fílmica do horror. A urgência humanista de “Utøya – 22 de Julho” – que, curiosamente, remete a “Voo United 93” (2006), do próprio Greengrass – se mostra bem mais capaz de produzir indignação, compaixão e repulsa à intolerância de qualquer natureza.