Diante da sensação de fim iminente, filmar, registrar. Esse foi um gesto recorrente no meio cinematográfico durante a pandemia, especialmente no seu primeiro ano. Vai e Vem, de Chica Barbosa e Fernanda Pessoa, se insere nesse corpo fílmico mais amplo, mas se destaca por conseguir demarcar uma especificidade: a obediência a um dispositivo, a um conjunto de regras estabelecido no início do projeto e seguido à risca até o fim. Trata-se de um filme epistolar, em que as duas diretoras, Chica morando nos Estados Unidos e Fernanda no Brasil, trocam cartas audiovisuais sobre suas experiências no confinamento, enquanto os dois países explodem politicamente. E cada carta produzida por elas deve se inspirar na obra de uma dentre dezesseis diretoras experimentais previamente selecionadas.
Essa prisão ao dispositivo, que de certa forma complementa a prisão do isolamento social, é a principal força do filme. Se por um lado, ao menos a princípio, ela reduziria a liberdade criativa das diretoras diante de uma realidade nova, apavorante e aberta, por outro, ela amplia essa possibilidade de olhares, sobretudo pelo diálogo com obras tão libertadoras quanto as das dezesseis realizadoras. Essa mediação do contato com um mundo em colapso exercida por imagens fílmicas previamente constituídas organiza o diálogo entre Chica e Fernanda, dá a ele uma forma mais precisa sem restringi-lo totalmente.
Aqui, aliás, aparecem alguns pontos de contato bastante interessantes entre Vai e Vem e os longas-metragens anteriores de Fernanda Pessoa. O lado da pesquisadora de imagens cinematográficas, manifesto com imensa criatividade em Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava (2017), retorna nessa relação com os estilos de diretoras que a inspiram estética e politicamente. Já a temática do conservadorismo norte-americano, presente em Zona Árida (2019), ressurge pelo contato de Fernanda com as imagens produzidas por Chica nos Estados Unidos de 2020, auge do trumpismo – Zona Árida capturou um pedaço do prólogo de sua chegada ao poder.
Só é uma pena que o dispositivo escolhido acabe, por algumas de suas características intrínsecas (a breve duração de cada vídeo-carta, a obrigatória filiação ao cinema de uma diretora experimental), esmaecendo o potencial dramático da experiência de Chica e Fernanda durante a pandemia. Sua força tem limites, portanto. Há pouco tempo para um contato mais intenso com os sentimentos de cada uma delas. Nesse sentido, as imagens produzidas por Chica, curiosamente, se mostram mais potentes na diegese de Vai e Vem, pois carregam um estranhamento muito próprio de alguém numa situação extrema num país estrangeiro – algo próximo do que eram os registros de Fernanda em Zona Árida. A familiaridade, inevitável para o espectador brasileiro, com as cenas filmadas em São Paulo pela diretora acaba tornando-as, em geral, menos instigantes que os angustiantes e por vezes hipnotizantes momentos californianos de Chica.
Texto escrito para nossa cobertura para o festival Olhar de Cinema 2022. Para acessar a página da nossa cobertura, clique aqui.