Ao assistir o longa de encerramento da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Valentina, foi difícil não lembrar de Cabeça de Negô, filme de Déo Cardoso, que também esteve na edição passada do festiva. Tanto pelo seu didatismo quanto por focar na maturação do jovem na escola, cada qual com suas figuras. Mas, talvez, hoje em dia, o que menos importa seja essa abordagem, ainda que ela seja um traço definidor na proposta.
O tempo do filme é de mudanças e tentativas de se adaptar a um novo espaço que está rejeitando o que é diferente de alguma forma. Essas tentativas são protagonizadas por Valentina, uma menina trans de 17 anos de idade. Os entraves vão desde a saída de uma antiga escola e a inserção do nome social na chamada dessa nova, um processo que a faz lidar com a dificuldade do pai ausente e os obstáculo do sistema. Enquanto esperamos, Valentina passa por uma turma de recuperação na mesma escola, para alcançar os meses sem aula. É nesse cenário que o filme desenrola os desejos e entraves de Valentina para se encaixar na adolescência como todos.
Um dado que logo aparece de cara para quem assiste são como são verbalizadas as relações entre os personagens. Se o gênero do filme pode se encaixar numa espécie de trama coming of age de amadurecimento, ele se implica também no melodramático informativo dos diálogos. A lógica do filme é de destacar e explicitar os discursos para um público maior, embutindo de forma direta esse traço em suas falas. Não sobram espaços para a dúvida da índole de um personagem ou a carga dos conflitos que Valentina acaba enfrentando, por exemplo. A cada obstáculo, impasse, indecisão, vemos Valentina e sua mãe, que apoia e ajuda sua filha em todo os processos, declararem seus desejos, vontades, de forma clara, direta e assertivas; dialogando com um público maior, alguém a mais que seja representado, desviado do local ou desconcertado. Seja a menção à uma lei, seja a relação fraternal, seus personagens sabem desse universo de questionamentos e imposições e agem informando os protestos, para nós, como público, ou para quem o questiona.
As palavras são ditas de forma dura, incisiva e bem articulada. Nesse sentido, a linha seguida do declaratório informativo, na intenção de afirmar seu próprio corpo sobre aquele cenário. Na ausência do texto, temos o emocional dos rostos sendo focados pelo plano, aumentando a dramaticidade da cena.
Essa relação pode ser vista mesmo nas relações com os colegas de classe, que se firma como sujeitos escolares minoritários e atingidos cada qual pela precariedade da escola ou do meio recluso em que vivem. Amizade sendo construída rapidamente, aproximação pelo ensinamento. Nos momentos mais divertidos, Valentina nos faz sentir presos ao que estamos acostumados daquilo que se propõe: um drama escolar. As cenas de festas, problemas no aprendizado, as “socialzinhas”, o flerte com os colegas. Dançamos com as jovens em cenas festivas e coloridas, nos identificamos com o jogo de flerte e rimos com as brincadeiras de seus amigos. Acontece, que aqui, há o elemento a mais, da transexualidade, que só é destacado, e com razão na narrativa, quando temos algum conflito que interfere nessa situação. Nesses momentos, o filme muda de tom e segue a tensão dada por Valentina, mas que logo é apaziguado pelo drama ou pela tentativa de proteção. Essa inserção de diferentes conflitos acaba resultando em diferentes sensações que não se conversam, porque não há o interesse no trabalho da escala da tensão. Ainda que vemos Valentina sofrer pequenas violências que impactam na forma de grandes traumas psicológicos, seja na ameaça da voz ou na atitude agressiva do outro, o filme aparenta renegar a violência como permanência de estilo e resposta, acabando por abraçar a via da declaração direta e verbal aos obstáculos. O quê, nesse caso, não é ruim, visto que a estrutura do filme se dá por esses pequenos embates que envolvem protesto e reinvindicações sobre os desejos
Ainda que o campo dos obstáculos seja violento, seus personagens agem por outra lógica, atravessados pelos obstáculos que os impedem de radicalizar, por conta de ameaças e traumas. A virada então é pela também já acostumada declaração política e contestatória, protagonizada pela união de corpos e vozes dos alunos. Se de um primeiro momento essa iniciativa parece ser muito irreal, ela se encaixa por conta da linha de diálogo do filme. Há aqui, um gesto político explícito, que fala com as redes, com os jovens e com o universo deles, como é possível ver também por meio dos diálogos declaratórios, que operam por discursos institucionais sociais. Novamente, o foco no público alvo não está somente nos diálogos já comentados, mas também na própria trajetória narrativa, que coloca como situação algo que costuma estar numa narrativa universal, e que aqui é diferenciado pela protagonista em questão.
Valentina apropria a fórmula adolescente universal para aquele que nunca esteve totalmente inserido nos clichês e dessa forma atinge universalmente diversos campos. Seja para quem se considera convertido, seja para quem irá se ver ali, seja para quem tá no campo reacionário, ou aquele que se sentirá incomodado com as ações das personagens antagonistas e se conectar com a jornada da personagem ou, como sempre tem, se ver desmontado pela contestação política.