Plano Aberto

Vazante

Em uma sociedade que, em pleno século XXI, exprime tanta raiva em suas relações interpessoais (vide a ascensão de políticos famosos por discurso de ódio e bravatas), filmes como Vazante são uma resposta interessante do cinema para tempos de ódio. A nova obra de Daniela Thomas (Linha de Passe) nos embarca para o período escravista e constrói um cenário que possibilita o estudo dos diferentes de níveis de opressão, onde a violência e a subjugação são sistemáticos e, com isso, tornam todo o ambiente hostil. Utilizando o sistema escravista, Thomas foca na construção da atmosfera do Brasil de 1821. Na história, um senhor de engenho português, Antônio (Adriano Carvalho), volta de viagem com o enxoval de seu filho e descobre que a criança e sua esposa morreram no parto. Devastado, Antônio acaba encontrando conforto em sua sobrinha, uma mulher muito mais jovem que acaba se aproximando do lusitano.

A primeira coisa que salta aos olhos é a fotografia em preto e branco de Inti Briones. Com a ausência de cores, Vazante adquire tom fúnebre: ninguém parece sentir conforto ou felicidade. Os longos silêncios também são importantes para isso, e são bem acompanhados pelas atuações deliberadamente mecânicas e frias de quase todo o elenco, permitindo que seja criado um elo entre atuações e ambientação. Assim, Vazante estabelece uma ambientação excessivamente fria. 

Aqui, porém, surge um problema. Com o enorme esforço para criar a atmosfera que permeia todo o cenário, o roteiro acaba se esquecendo de introduzir e desenvolver de forma satisfatória seus personagens. Até metade da projeção, é difícil identificar quem é o protagonista. Há personagens que surgem e desaparecem sem mais explicações. Há personagens que ocupam um considerável tempo de tela para, depois, não voltarem. Há personagens que são importantes narrativamente, mas trazem pouquíssimos diálogos. Com isso, todos os habitantes daquela fazenda parecem ferramentas para um contexto maior – o que funciona para criar clima, mas não torna a trama coesa.

É interessante ver como as relações de poder são exploradas ao longo do filme. Há, por exemplo, os escravos brasileiros e os escravos africanos. Os brasileiros, já moldados pelo sistema escravista, subjugam os africanos, que não aceitam sua condição e são, ainda quando não acostumados, externos à bolha social do Brasil. Por meio dessa relação de poder, Vazante funciona ao nos mostrar que a relação de subjugação de outros humanos está presente não só na relação do escravocrata com seu escravo, mas em todas as camadas daquela sociedade.  

Mantendo uma câmera estática, Thomas busca criar uma estética quase documentarista em seu filme, o que para alguns pode parecer uma escolha voyeurista de extremo mau gosto, já que boa parte do que é projetado é recheado de racismo e machismo. A intenção, porém, é passar naturalidade às imagens – o que funciona. A câmera intende imergir em um período brutal de nossa história sem nunca forçar aproximação ou sugerir interferência. Vazante almeja e alcança ser uma viagem histórica que não enaltece, mas retrata e evidencia a crueldade e a opressão dos que ocupavam o topo da pirâmide social daquela época.

Vazante tem uma proposta honesta, mas não tão aprofundada quanto precisaria para dar significado às imagens. Thomas se prende tanto à construção do cenário que parece esquecer-se daqueles que o ocupam. Com personagens tão vagos e passageiros, é difícil que qualquer uma das estruturas de poder apresentadas no filme sejam realmente claras e aprofundadas. Mesmo assim, a ambientação hostil e a inexorabilidade da dor e da melancolia se fazem presentes em cada plano milimetricamente projetado. Vazante é um filme duro. Não por ser ruim, mas por direcionar seus holofotes a um período tão sombrio de nossa história – e que não parece tão distante assim da nossa atualidade.

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