Gostar ou desgostar de “Vingança”, filme de estreia da francesa Coralie Fargeat, depende imensamente de como o espectador vai absorver um importante fato situado no fim do primeiro ato. Ali, o que era um filme com os pés pregados na realidade passa a ser uma obra mais surrealista, fantasiosa. “Vingança” desprende-se do realismo, mas não por preguiça ou incoerência do roteiro, e sim por uma opção de Fargeat, que transforma a sequência em uma sátira do cinema de ação, ao mesmo tempo em que é, dentro da narrativa, um ritual de transformação e renascimento.
A cena em questão traz a protagonista, Jen (Matilda Lutz), em uma situação extrema, na qual qualquer pessoa, na vida real, teria morrido. Para se apreciar “Vingança”, então, há de se abstrair da realidade e compreender a função da bizarrice que permeia o momento. A partir daquele ponto, o longa deve ser encarado como um devaneio fantástico: “o que teria acontecido caso Jen tivesse sobrevivido?”. A trama acompanha a vingança da protagonista, jovem assassinada por seu namorado e amigos, que a mataram para acobertar um crime. Após “renascer”, Jen parte em busca do grupo de homens para exterminá-los.
Porém, quando explora essa abstração da realidade, “Vingança” se mostra um filme esteticamente pouco inventivo. Mesmo, que a partir do momento em que Jen é assassinada, tudo seja hiper-fantasioso, não há um deslocamento estético que mude a forma do filme. Não há uma criação de caricatura ou trabalho baseado em estereótipos para fazer da perseguição e vingança da protagonista um longa distinto do que era antes da morte de Jen. Esse, talvez, seja o aspecto mais propenso a incomodar o público, dificultando que o espectador compre a ideia de Fargeat.
Por outro lado, alguns elementos de “Vingança” ainda podem ser analisados como sátiras. A “quase-morte” de Jen, por exemplo, que é resolvida com uma cauterização bem fantasiosa, muito lembra saídas de roteiro vistas em filmes como “Rambo”, quando o herói vivido por Sylvester Stallone cura um ferimento de tiro com ferro quente. Analisando por esse escopo, é interessante pensarmos que “Vingança”, no fim das contas, provoca uma reflexão sobre como público e crítica percebem uma mesma situação quando retratada com homens e mulheres – grande parte das pessoas que critica a “mentirada” presente em “Vingança”, muito provavelmente não se incomoda com a cicatrização mágica de John Rambo.
Também é interessante como a obra de Fargeat trabalha a inversão de situações. O primeiro encontro da protagonista com dois dos responsáveis por sua morte, por exemplo, traz a personagem dentro de uma casa, sendo encarada por eles, que estão do lado de fora, através de um vidro. Ali, pelo fato de os homens terem armas na mão e a olharem com uma expressão objetificadora, há uma clara fragilização da moça, que parece – e está – vulnerável. Já mais adiante, quando Jen está em busca de sua vingança, quem está armada e encarando alguém do lado de fora da casa, olhando através do mesmo vidro, é a protagonista, que encurrala seus algozes.
“Vingança” é um filme que ainda carrega uma agradável dose de simbolismos. O confronto final entre Jen e um dos homens, por exemplo, traz o vilão em situação totalmente oposta do que vemos no início da projeção. Já sem a necessidade de fingir ser boa pessoa para agradar a moça, o sujeito não só age de forma bruta – diferente da falsa gentileza que exibia nos minutos iniciais -, mas também está nu durante toda a cena. Sua nudez, claro, representa a ausência das máscaras sociais. Ali, sem a necessidade de fingir ser o que não é, o homem é uma figura cruel, egoísta e, sem a vantagem de outrora, vulnerável.
Mesmo que dependa demasiadamente da suspensão de descrença de seu público para funcionar, a obra de Coralie Fargeat é bem-sucedida principalmente por seu simbolismo social, que transforma o machismo e a cultura do estupro em recursos para cimentar uma narrativa de vingança digna de um grande filme de ação. Um bom começo para uma promissora cineasta e entretenimento de primeira para aqueles que conseguirem suspender seu ceticismo.