Viúva Negra

Viúva Negra

Dublê de filme

Matheus Fiore - 12 de julho de 2021

Todos já devem ter visto na internet algum vídeo de robôs com feições humanas que reagem e respondem como um ser humano de verdade. São experimentos que simulam nosso comportamento, mas obviamente, caem no vale da estranheza, e dificilmente alguém em sã consciência acredita que são pessoas. Por mais que seja tentador usar o exemplo para falar dos efeitos digitais de Viúva Negra, que viraram motivo de piada na internet, uso o caso dos robôs para traçar um paralelo mais abrangente com a obra da Marvel: se esses bonecos com cara de plástico são “dublê de gente”, Viúva Negra é um “dublê de filme”.

Não é novidade para ninguém que há alguns bons anos os filmes da Marvel têm sufocado qualquer esforço artístico de seus realizadores – o que levou, por exemplo, Edgar Wright a abandonar a produção de Homem-Formiga – em prol de um mecanismo bastante claro: todo filme é um derivado de seu antecessor e um trailer de seu sucessor. Curiosamente, esse meio-termo entre ser um spin-off e um trailer não se aplica tanto a Viúva Negra. O filme de Cate Shortland fica mais no derivado: uma aventura que amarra pontas soltas da trajetória da primeira heroína apresentada no MCU. Mas isso não quer dizer que Viúva Negra se desprenda da fórmula Marvel; na verdade, é um dos mais plastificados produtos do estúdio até aqui.

Voltamos a tempos passados para conhecer a infância da personagem e sua origem como uma das mais letais agentes da SHIELD. Tendo como base essa história tão simples – o que vale notar: não é um defeito –, Shortland propõe um filme de ação e espionagem que, em uma análise simples, mescla um pouco da série Bourne com a parte aventureira de Missão Impossível para preencher a obra. O que torna tudo desastroso, entretanto, é a total falta de apreço por qualquer uma das inspirações cinematográficas do filme. O que temos, na verdade, mal se parece um filme, soa mais como um agregado de momentos de uma série de televisão Netflixiana. Um filme propaganda imperialista e da própria indústria da Marvel que finge se importar com a ação, com a aventura, com os personagens, mas parece tratar todos apenas como avatares que falam inglês com sotaque russo caricato e que estão lá para vender bonecos. Qualquer um dos muitos assuntos sugeridos por Viúva Negra surgem para durar por alguns minutos, antes que chegue a próxima cena e nada mais seja relevante.

Tudo em Viúva Negra parece feito para não prosperar. A trama familiar é um fiapo de história que existe para dar alguma motivação para as personagens mas que não demora para ser abandonada em prol de outras agendas do filme. A trama política existe apenas para reiterar um forte viés anticomunista do MCU e demoniza quaisquer políticas que não sejam a dos próprios Estados Unidos. A ação segue o estilo sem vida de outros títulos da franquia bilionária e, apesar de não ofender, não é capaz de apresentar uma sequência que pareça resistir dez minutos na nossa memória antes de se perder como qualquer enxerto genérico do universo marvelesco. Já a trama de espionagem… bem, é até difícil dizer que ela de fato existe.

O que fica evidente é que Viúva Negra é um grande esforço para justificar a existência do filme por sua importância – é no mínimo embaraçoso que, em treze anos, seja apenas o segundo filme do estúdio dirigido e protagonizado por mulheres –, mas não por ser um filme. Tudo é farsesco e distante demais. A trama política importa por cinco minutos, já a familiar, por quinze. As cenas de ação terminam por, além de não terem impacto, não ter o que alimentar. Há até mesmo uma tentativa de fazer do clímax uma missão de libertação feminina, mas que, assim como todos os demais experimentos dramáticos e formais, não repercute em nada no filme. Tudo é infrutífero e parece existir apenas em pequenas esquetes que, mal coladas, formam um projeto de filme de 130 minutos. Viúva Negra se preocupa em desenvolver o núcleo familiar até certo ponto, e dali em diante, já se preocupa com outras coisas e nada parece ir para frente.

Não ajuda que mesmo quando Shortland tente algo um pouco mais delicado para fazer com que alguns de seus interesses dramáticos pareçam reais – o que mais foge do desastre aqui é a tensão familiar da protagonista –, Viúva Negra seja tão genérico que apenas reitera a sensação de falso filme. Tudo parece uma grande piada com a cara do espectador. Tudo é tão frio, distante e com aquele gostinho de “já vi esse filme, só que melhor”, que o único fruto dessas tentativas é o distanciamento emocional do espectador. Uma sensação de “tá bom, Marvel, vamos para os easter eggs que eu já entendi que é só isso que importa”.

O resultado é um “filme” que se esforça tanto para parecer real que parece exatamente o oposto disso. Um delírio coletivo, um estelionato audiovisual, um golpe para imprimir dinheiro. Não um filme de verdade, mas um experimento, que aspira ser um, mas que parece não se perceber como cinema, como uma experiência audiovisual autossuficiente e independente de franquias e easter eggs (a maldita frase “eu sou fã, eu quero service” é a maldição da Marvel). Pobre de forma e de conteúdo, Viúva Negra é um dublê de filme, um robô com cara de borracha tentando conversar com um ser humano, mas que é apenas capaz de reproduzir o que já está pré-programado em seu software, sem ter qualquer vida própria que não dependa do algoritmo por trás.

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