“Vox Lux” não é um filme convencional. Brady Corbet não oferece lições de moral ou personagens edificantes. Em vez disso, quase como um documentarista, vai à essência do que se tornou a sociedade contemporânea: superpovoada por simulacros, consumismo e violência. Muita violência. E, como na obra de George Orwell, capaz de conciliar crenças mutuamente contraditórias e seguir em frente sem questionamentos.
Alguém lembra da Geisy Arruda? Ou, sendo mais específico, alguém lembra por que Geisy Arruda ficou famosa? Aqui vai um refresco à memória do leitor: no longínquo 2009, a então estudante de Turismo da Universidade Bandeirante de São Paulo foi hostilizada por cerca de 700 alunos, tendo que abandonar o campus escoltada pela polícia e sob gritos irreproduzíveis num site familiar como é o Plano Aberto (mas facilmente encontrados no YouTube). À época, a colunista Ruth de Aquino escreveu um texto profético: “A estudante ficará traumatizada? Ou célebre e rica? Geisy pode ganhar indenização, escrever um livro, posar para a Playboy e inspirar um filme. Esta é a vida como ela é”.
Esse é exatamente o ponto de partida de “Vox Lux”: as consequências que um ato de violência aleatória têm na vida de alguém que se torna famoso por conta dele. A diferença para Geisy é que Celeste (neste momento, interpretada por Raffey Cassidy) não foi hostilizada por uma roupa. Foi vítima de um massacre escolar. A forma como o filme chega a isso, ainda que em seus primeiros minutos, é chocante.
Seguido pelos créditos finais (“Vox Lux” não é um filme convencional mesmo), o massacre de fato encerra uma história e começa outra: a jornada de Celeste no show business. Inicialmente acompanhada por sua irmã Eleanor (Stacy Martin) e o Empresário (Jude Law. O título está grafado com inicial maiúscula porque o Empresário nunca tem seu nome mencionado durante o filme). É quando as coisas começam a ficar interessantes.
O subtítulo original de “Vox Lux” é “um retrato do século XXI”. Essa sinédoque social (quando um indivíduo representa os valores da sociedade em que está inserido) não é novidade, basta ver as Parábolas de Jesus. A ideia de que um artista pode mudar a consciência coletiva, apesar de obscura, é defendida por ninguém menos que Alan Moore (autor que já analisamos em outra ocasião). Essa associação entre arte e magia – sim, magia – é descrita em detalhes pelo próprio Moore no documentário “The Mindscape of Alan Moore”. Clique aqui se tiver maior interesse.
O que Brady Corbet traz de novo é o questionamento sobre o quanto a consciência coletiva afeta o artista/mago enquanto é influenciada por ele. O quanto um é produto direto e indissociável do outro. No fim do primeiro ato, o Narrador (um equilíbrio fino entre macabro e cômico entregue por Willem Dafoe) pontua que “a perda da inocência de Celeste culminou com a perda da inocência do mundo”. Os atentados de 11 de setembro ocorreram no mesmo dia em que ela gravou seu primeiro videoclipe. Surge então um novo questionamento: se o mundo influencia a arte de Celeste e a arte de Celeste influencia o mundo, quem é Celeste?
“Vox Lux” dá algumas pistas sobre isso. A mais evidente (e mais fácil de passar despercebida pelas pessoas) está na sua proporção de tela. O formato 5:3, o “Super-16”, simula o antigo rolo de filme de 16 milímetros, uma opção mais barata à bitola de 35 milímetros. Para aumentar em 25% a espessura do quadro, o “Super-16” usa a área destinada ao registro do áudio. Temos aqui, portanto, uma ideia de registro barato, que privilegia a imagem em detrimento do som. Um rosto sem nada a dizer, se preferir colocar nestes termos.
Também vale a pena checar o que o título do filme tem a dizer sobre ele: “Vox Lux” é, traduzido do latim, “A Voz da Luz”. A luz é uma onda eletromagnética, que não precisa de um meio material para se propagar. O som, por sua vez, é uma onda mecânica, que não se propaga no vácuo. É por isso que a luz do Sol chega à Terra, mas não é possível fazer barulho no espaço.
O ponto é que a luz emite som. Ao perturbar um meio material, a agitação das moléculas gera sons que podem ser captados pelo ouvido. Um exemplo são os lasers usados para remover pintura e ferrugem de automóveis. A arma mais elegante da ficção, o sabre de luz, segue o mesmo princípio: um laser superconcentrado perturbando as moléculas de ar por onde passa. E você achando que as aulas de Física tinham ficado no colégio…
O que estes dois parágrafos carregados de insuportável conhecimento querem dizer é que “A Voz da Luz” precisa ser muito intensa para ser ouvida, causa destruição por onde passa e não é bonita. Exatamente como a vida/carreira de Celeste. Estridente e ininteligível.
Duas cenas em “Vox Lux” trabalham especificamente com o conceito de esvaziamento do discurso verbal. Na academia, ainda durante o primeiro ato, uma reportagem na televisão repercute a Operação Reunião, acusada de usar força desproporcional para o simples resgate de uma criança. Celeste escuta “I Don’t Want To Wait” enquanto faz sua série no elíptico. A conclusão de uma complexa crise diplomática entre Estados Unidos e Cuba é preterida pela “música de Dawson’s Creek” (que também foi esvaziada de sentido, já que originalmente é uma homenagem de Paula Cole ao avô, veterano da Segunda Guerra Mundial). Tudo vira white noise para Celeste esculpir seu corpo e futuramente aparecer naquela mesma TV, cantando outra música com uma letra à qual ninguém dará atenção.
A outra cena abre o segundo ato. Celeste (agora interpretada por Natalie Portman) precisa lidar com uma ligação indireta de seu nome a um atentado a tiros na Croácia. Considerando que a carreira dela só existe por outro atentado a tiros, a mera especulação de que sua arte tivesse como intenção inspirar crimes dessa natureza deveria chocá-la, horrorizá-la, enojá-la. Em vez disso, vemos a mais completa indiferença. Enquanto ela, o Empresário e a relações públicas Josie (Jennifer Ehle) discutem a melhor estratégia a ser adotada na coletiva de imprensa sobre o tema – a mais vazia possível –, a câmera registra um plano-sequência do trio descendo por uma escada parcialmente iluminada. Essa representação física da descida pelas trevas ganha um significado simbólico.
A menina que subiu num púlpito e cantou sobre a dor que sofreu não existe mais. Agora, ela é uma representação dessa menina. Mais televisiva e articulada, nada autêntica. Um simulacro de empatia. Uma concha. Ao escalar Raffey Cassidy para interpretar a Celeste jovem e Albertine, filha da Celeste adulta, percebemos a mudança do mundo numa nova geração, como “a mesma” criança não é mais como antes. Também construímos inconscientemente uma ideia de eterno retorno, em que erros do passado vão se repetir para sempre. Que não existe uma mudança, mas uma ilusão de mudança.
Entender Geisy Arruda ajuda a entender Celeste (outro nome latino, que significa “vinda do Céu”). Ao mesmo tempo em que questionamos o “merecimento da fama” de alguém que não fez nada notável, seja receber hostilidade ou um tiro, não nos privamos de clicar num link falando sobre a “nova aventura” dessas insólitas celebridades. Nossa curiosidade quase mórbida não apenas mantém estes ídolos, mas os estimula a ir além na jornada de se fazer ouvir. O drama é que, mesmo tendo acesso a tanta informação sobre essas pessoas, nós certamente não as conhecemos. “Vox Lux” encerra com uma declaração sobre quem somos: consumidores ávidos de nada.
Um soco no estômago.