Fazer um filme tateante — ou seja, que se joga no escuro e tenta encontrar algo para tocar, isso é, uma obra que tenta descobrir sua própria identidade no seu percurso, sem uma ideia clara antes do próprio ato de filmagem, cujo apontar da câmera para o mundo está sempre buscando uma revelação ou faísca naquele momento — é inevitavelmente uma atividade de risco, mas cujas intenções são bem-vindas como manifestação de um espírito livre de um cinema de baixo orçamento que pode resultar em escolhas criativas muito curiosas e espontâneas. Inserido nesse contexto, Xamã Punk se baseia num jogo imaginativo num futuro pós-apocalíptico, após uma inundação da Terra, em que dois jovens, que viviam em uma caverna, decidem ir até o Sol, cruzando no caminho pelos restos de mundo e filmando essa jornada.
Neste sentido, o grande tatear de Xamã Punk está nesta tentativa de evocar seu mundo distópico a partir do mínimo de recursos materiais possíveis, re-aproveitando lugares reais, como um famoso prédio abandonado na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, para servir como cenário futurista. Infelizmente, nem sempre a busca por imagens são bem-sucedidas e por boa parte do tempo o diretor João Maia Peixoto parece tentar arrancar a fórceps uma dimensão mística ou fantasmagórica da presença da arquitetura e escombros daquele prédio, apontando sua câmera para todas as pedras, buracos e ângulos possíveis. Contudo, boa parte das imagens encontradas são sempre um beco sem saída que de fato pouco acrescentam no clima de seu filme.
Existe um certo cansaço no seu acompanhamento, com a sensação de que o filme não consegue avançar de sua premissa e que todas as sequências andam em um círculo ou até esquecem a ideia inicial dos personagens em irem para o Sol, pouco adicionando alguma camada, narrativa ou sensorial, ao mundo proposto inicialmente. Não há propriamente uma anarquia, mas sim uma ausência de propósito maior, o que não deixa de ser um risco assumido de um filme tateante. Gritarias e uma trilha sonora bem presente buscam expandir esta sensação de estranheza do mundo, mas no fundo elas parecem mais uma tentativa de camuflagem do filme não ter conseguido encontrado situações suficientes para se desenvolver. Apesar disso, sem querer fazer uma defesa do fracasso do filme em ser uma experiência que funcione, há alguns desdobramentos no mínimo curiosos de seu caráter errático.
Curiosamente, existe um carioquês contemporâneo (e digo isso como carioca) muito particular na comunicação dos personagens de Xamã Punk, que às vezes provoca a sensação de que os atores estão sendo eles mesmos, o que gera uma quebra na imersão na ficção que, em um primeiro momento, poderia ser de todo ruim, mas leva o resultado também a outros lugares não esperados. Intencional ou acidental, isso produz um efeito de deslocalizar temporalmente o filme, que ora parece existir no futuro e ora no presente. Indo além, essa quebra da imersão também embaralha a própria ficcionalidade da narrativa, em um processo que conscientiza a busca pelo fazer fílmico dentro do próprio filme. Durante toda a experiência de Xamã Punk, somos lembrados que há ali uma equipe de pessoas reais, no presente, se divertindo nesta aventura maluca que eles se propuseram em prol de fazer um filme. O fato da narrativa assumir diegeticamente o ponto de vista de câmeras em que os personagens querem registrar sua jornada funciona como forma de dar ao filme esta “segunda camada”, em que no presente contemporâneo da realidade ou em um futuro distópico ficcional, no meio de todos os escombros do mundo, o desejo do Homem em fazer cinema e registrar o mundo permanece.
A partir disso, quando vemos um personagem ir para a beirada de uma montanha em uma trilha, quase se matando, ou mesmo se arriscando por um prédio que pode ruir a qualquer momento só para apontar a câmera curiosamente para algo, é impossível não pensar na própria equipe real do filme que está em uma aventura em busca de imagens. Não é só o personagem ali, mas o diretor e os atores se arriscando para fazer o próprio filme existir. Quer a narrativa funcione ou não como um projeto coeso, seu processo tateante pelo menos revela materialmente a vontade de João Maia Peixoto e sua equipe de ir atrás de fazer Cinema no mundo real e isso é no mínimo um manifesto prático involuntário de um cinema ultra independente.
Por isso, penso que Xamã Punk é um filme de bastidores e de execução ao mesmo tempo, pois a leveza e o descompromisso em levar a sério toda aquela ficção são tão grandes que, para o bem e para o mal, ele não deixa de ser sobre a aventura de uma equipe amadora se divertindo na tentativa de fazer um filme e o quão longe ela está disposta a ir nisso. Quanto menos se prende na sua ficção e mais se joga nesse olhar raio-x, enxergando a equipe fazendo o filme, melhor ele funciona em suas intenções e até com mais honestidade com o que o projeto de baixo orçamento representa.
*Filme visto na Mostra Aurora, dentro da Mostra de Tiradentes 2023, como parte da cobertura in loco do festival. Acompanhe nossa cobertura completa aqui.