Plano Aberto

Dear White People – 1ª temporada

Gerando polêmica desde seu anúncio, quando a série foi acusada de “racismo reverso” ao, já no trailer, jogar na cara do público alguns exemplos de pequenos racismos do dia-a-dia que ainda perduram, Dear White People se tornou imediatamente uma das mais esperadas produções da Netflix em 2017. E não é pra menos, baseada em filme de mesmo nome lançado em 2014, conceber uma obra que ataque o racismo de forma tão agressiva e crua é algo que ainda espanta o espectador.

No papel protagonista, temos Samantha White, locutora do programa da rádio universitária que leva o nome da série. Entendemos suas amizades, inimizades e contexto dentro do movimento social negro da instituição. A série, porém, nem esboça um foco na personagem em sua primeira metade. Dos 10 capítulos dessa primeira temporada (por favor, façam mais!), pelo cinco são dedicados à desenvolver personagens específicos. A melhor amiga da protagonista, seu antigo amor, seu namorado, o colega gay que tem vergonha de sua sexualidade, e por aí vai.

A série começa como um verdadeiro rolo compressor. O primeiro episódio é narrativamente envolvente por conseguir nos apresentar todos os personagens e núcleos da faculdade de Winchester, mas também se destaca pelo domínio técnico de seus realizadores. Com uma montagem extremamente fluida que  faz referência à personalidade de sua protagonista, comparada à um tubarão (só reduz sua velocidade para atacar), que passeia entre as diferentes esferas sociais do seriado e agiliza os diálogos para não perder tempo, somos inseridos de cabeça num mundo satírico e irônico que retrata as diferentes vertentes do racismo, tanto histórico quanto no século XXI.

Para dar um tom mais debochado à narrativa, há a presença de um narrador-observador que sempre comenta sobre os acontecimentos de forma irônica. É um grande acerto, pois o mais óbvio seria utilizar a narração da protagonista, que, afinal, trabalha num programa de rádio, o que tornaria seus comentários bem críveis dentro da trama. A narração de um locutor extra-trama (com voz de Giancarlo Esposito), então, dá um tom mais neutro às palavras proferidas, nos ajudando a observar a trama de fora para dentro (afinal, Dear White People não é uma série para o público negro se orgulhar, e sim para incomodar o público branco e faze-lo pensar).

Dear White People ainda é corajosa por, além de atacar as situações de racismo que muitas vezes são tratados como “coisas pequenas”, também ser capaz de olhar para dentro do movimento negro e identificar pequenos problemas, como a dificuldade de aceitar o relacionamento entre a protagonista negra e um rapaz branco. O preconceito interno, inclusive, é bem representado em pequenas passagens, como por exemplo quando a protagonista caminha ouvindo música pelo campus de Winchester até que, ao ver suas colegas do movimento, muda a faixa para uma “mais negra”. O que a série não explora (e que deveria), é que esses pequenos traços de intolerância nada mais são do que o reflexo de séculos de segregação, que levaram a comunidade negra a valorizar sua própria cultura acima de tudo.

O grande mérito de Dear White People é sua estrutura (pelo menos até metade da temporada). Além de ter episódios com pouco mais de vinte minutos de duração (o que nitidamente foi pensando para proporcionar maratonas), em momento alguma série enrola seu espectador para desenvolver a narrativa, tornando toda a temporada extremamente dinâmica (muito graças à já mencionada montagem). Há um senso de continuidade muito forte, mesmo que os episódios tragam abordagens diferentes de acordo com cada diretor. DWP é um sinal da evolução da narrativa televisiva, um exemplo a ser seguido por outros programas que ainda possuem fórmulas tão engessadas.

Um dos grandes acertos da construção do drama da série é a organização de acontecimentos específicos. Há um momento em que um rapaz branco sofre um acidente e tem uma morte estúpida. O campus inteiro se choca e se solidariza com sua morte. Pouco depois, vemos um dos personagens negros correndo risco de vida, o que faz com que o público pense na possibilidade da morte de tal rapaz para traçar paralelos entre o luto branco x luto negro. Essa sequência de eventos cria o momento mais tenso da série, que além envolver um personagem explosivo, utiliza ângulos que o aproximam espacialmente do policial que o oprime, sugerindo uma possível reação violenta (o que tornaria a situação trágica).

Após esse conflito, infelizmente, a série tem uma grande queda de qualidade. Todas as discussões interessantes sobre racismo institucionalizado são ignoradas e a temporada se torna mais “novelística”, explorando romances entre os personagens, brigas de casais e entraves entre alunos e faculdade. Ao fim do último capítulo, fica a clara noção de que a série perdeu o fôlego e se acomodou em conflitos pessoais muito clichês. Enfraquece ainda mais o produto final o fato do clímax do episódio 10 tentar criar múltiplas tensões em diferentes núcleos narrativos. Ao não desenvolver bem nenhum deles, torna todos rasos, o que impede um impacto maior no fim. A situação do filho do reitor, por exemplo, que poderia ser a mais emblemática, não só é sempre construída no segundo plano, como tem sua resolução estabelecida no segundo plano, impedindo que tenha algum impacto direto.

Em sua linguagem, Dear White People  não traz grandes novidades, mas agrada. Nos momentos em que visa destacar o sofrimento dos personagens, utiliza zooms lentos aliados à redução de profundidade de campo para construir uma imersão quase claustrofóbica na mente dos negros. No episódio dirigido por Barry Jenkins (de Moonlight), há o momento em que Reggie se encolhe na porta do quarto, aos prantos, e a câmera se aproxima e reveza com planos close-up que destacam o rosto do ator do resto do cenário é, talvez, o mais chocante da série. Ajuda, claro, o excelente elenco. Logan Browning no papel principal e Marque Richardson como Reggie Green são os mais competentes e são capazes de imprimir desde fragilidade à raiva dependendo do momento em que atuam, sem nunca utilizar muletas ou excessos.

Ao fim da temporada, o balanço é positivo, mas decepciona no meio do caminho. A série sabe provocar questionamentos importantes e retratar pequenos racismos do dia-a-dia com a agressividade necessária, sem esfregar seu viés na cara do espectador mas sem também passar a mão na cabeça do público. Uma pena que a perda de fôlego faça a segunda parte da temporada cair no melodrama e deixar os importantes temas raciais serem coadjuvantes diante dos conflitos amorosos dos personagens. Do primeiro ao quinto episódio cria-se a expectativa para uma conclusão apoteótica, que é substituída por dramas pessoais que nada acrescentam ao cerne da série. O excesso de conflitos adolescentes, inclusive, tira o espaço de subtramas que poderiam ser extremamente interessantes, como a chantagem feita em cima do filho do reitor da faculdade. Mesmo assim, são muitas as possibilidades para a segunda temporada. Dear White People aborda um tema obrigatório de forma moderna e acessível e é, desde já, uma série seminal no catálogo da Netflix.

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