A febre de adaptações dos quadrinhos precisaria chegar, mais cedo ou mais tarde, a um novo patamar de conteúdo crítico, deixando de ser uma mera transposição para a tela grande das páginas coloridas que líamos na infância. HQs retratam, em última análise, a visão de seus autores sobre o mundo em que viveram; adaptar uma obra deve, portanto, transpor a essência destes personagens para o nosso tempo, de forma que possamos usá-los para analisar uma visão sobre o mundo em que vivemos. Esta proposta transforma a segunda temporada de Demolidor em um marco para o gênero.
Se Jessica Jones (2015) já havia usado uma heroína para ilustrar o sofrimento de mulheres vítimas de abusos, Demolidor vai além ao questionar o próprio conceito de herói, evocando autores da Sociologia para renovar o debate sobre o papel do Estado na manutenção da ordem e a existência dos justiceiros, idolatrados inclusive por setores da sociedade brasileira.
Defensores do Estado Mínimo acreditam na teoria rousseauniana de Estado Natural, em que o isolamento humano anterior à sociedade civil criou características positivas nos indivíduos, como bondade e piedade. Logo, o Estado seria a morte da vontade individual em nome da vontade geral. Contudo, o elogio ao “bom selvagem”, homem do Estado Natural de Rousseau, se dá pela falta de preocupação que este tem para com a propriedade privada. Não preciso me delongar na importância que o mundo ocidental dá à propriedade privada. Para preencher esta lacuna, existe o Contrato Social de John Locke: um Estado baseado em confiança e consentimento, ocupado em garantir exatamente o direito à propriedade privada; se tal Estado não garantir este direito, o povo pode tirá-lo do poder. Defensores do Estado Mínimo defendem, portanto, um Estado repressor. Mas o que acontece quando tal Estado repressor falha? Quando a violência do crime organizado coloca em risco a manutenção da propriedade privada, a que uma sociedade está disposta para reaver sua segurança? O que representa, afinal de contas, a figura do herói?
Qualquer um que tome a lei em suas próprias mãos está suspendendo o pacto e se colocando no estado que Thomas Hobbes, o terceiro sociólogo da tríade clássica do contratualismo, chama de Bellum omnium contra omnes, “a guerra de todos contra todos”. O herói se justifica pela eficiência do arbítrio: enquanto seus resultados são satisfatórios, ele é aplaudido; seus resultados se tornando inconvenientes, o herói também se torna. Quão maior for o período do herói em atividade, mais questionável é sua eficiência.
A segunda temporada de Demolidor é uma continuação imediata da primeira, mostrando as principais consequências da prisão do Rei do Crime Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio), promovida pelos advogados Matt Murdock (Charlie Cox) e Foggy Nelson (Elden Henson), ajudados pelo justiceiro alter ego de Murdock. Quando as principais organizações criminosas de Nova York e seu maior chefe saem de cena não é o fim da violência, mas o começo de uma guerra para preencher o vácuo criado pela falta de comando no poder paralelo. Em vez de melhorar, a situação piora; também se torna questão de tempo para que o símbolo do Demolidor inspire outros a criarem suas próprias leis. O que acontece quando temos, além do Estado e do crime organizado, dois justiceiros com diferentes códigos de ética em circulação?
O Justiceiro (no original, Punisher, brilhantemente interpretado por Jon Bernthal) Frank Castle testemunhou o assassinato brutal de sua família e decidiu se vingar promovendo uma chacina sistemática de todos os criminosos envolvidos. Ex-fuzileiro, é “o exército de um homem só” e não acredita na redenção alheia. Esse homem que assume o papel de juiz, júri e carrasco obriga o Demolidor a confrontá-lo. Suas visões peculiares de justiça, expostas num diálogo do terceiro episódio (o melhor da temporada, em minha opinião), giram em torno da seguinte questão: toda vida merece ser salva? E a pergunta que todos nós deveríamos nos fazer neste momento é: cabe a eles a decisão sobre quem vive ou quem morre?
Os crimes cometidos pelo Justiceiro interessam diretamente a promotora Samantha Reyes (Michelle Hurd), que vê neles a possibilidade de catapultar a própria carreira. Uma figura que deturpa as instituições e é capaz de transformar a desgraça alheia em benefício próprio, gerando mais descrença neste sistema preso em sua própria hipertrofia e mais preocupado em ocultar falhas do que em promover justiça. Lembrei imediatamente de certo juiz brasileiro que decidiu vazar certas escutas ilegais para certo jornal e ganhou projeção de herói nacional (termo mais adequado para o contexto, impossível).
Se somos capazes de viver tão intensamente o caos vivido por Castle, não é apenas pela atuação de Bernthal. Charlie Cox dá vida a um Matt Murdock cada vez mais dividido entre as duas vidas que leva e as escolhas que se vê obrigado a fazer. Essa divisão leva a um constante afastamento de seus amigos Foggy e Karen Page (Deborah Ann Woll, melhor do que na temporada passada). Esse afastamento dá espaço para que cada um possa ser analisado melhor: Foggy investindo em sua carreira na advocacia e Karen numa jornada pessoal em busca da verdade, encarnando uma relação mestre-discípulo digna de Spotlight com o editor-chefe do jornal NY Bulletin Mitchell Ellison (Geoffrey Cantor).
Personagens como Claire (Rosario Dawson) e Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss) nos lembram que este universo é maior do que Demolidor, outros justiceiros já são uma realidade e algo está prestes a acontecer. Alguns acontecimentos no final da temporada dão boas pistas de como Jessica Jones e Luke Cage podem, eventualmente, se aliar a Murdock.
A série faz uso competente de recursos técnicos para enfatizar aspectos narrativos. Se a primeira temporada pode ter nos deixado com a sensação de incredulidade a respeito de como um cego é capaz das proezas do Demolidor, a segunda resolve este problema nos dando a verdadeira dimensão de como Murdock usa seus outros sentidos, principalmente a audição. Tanto a edição quanto a mixagem de som dão a real importância do que Matt ouve (em alguns momentos-chave, do que não ouve também). Contrastando com seu foco auditivo, a fotografia abusa da cor amarela durante a noite. Uma cor que, em excesso, representa distração e ansiedade, mas não afeta o Demolidor.
Em outras circunstâncias, o amarelo é utilizado no seu significado clássico de cor quente, otimista e alegre, principalmente nos primeiros episódios. Ele vem das janelas do escritório Nelson & Murdock, ou contrasta Page com o frio auxiliar da promotoria Blake Tower (Stephen Rider). Contudo, mesmo este otimismo e alegria são fugazes: a iluminação quente vem da janela, e não de dentro do escritório; conforme Page se aprofunda em sua busca, os tons vão ficando mais intensos, até que sua grande revelação é recebida no amarelo caótico de Matt, como um indício de que aquela realidade é capaz de afetá-la.
A direção que, em determinados momentos de diálogos corriqueiros se perde com excessivos cortes, está magnífica nas cenas de ação. Destaque para a luta na escadaria (você saberá de qual luta estou falando quando a vir); A edição encontra no flashback uma solução muito inteligente para introduzir a personagem Elektra (Élodie Yung, lavando a alma de quem estava há 13 anos engasgado com Jennifer Garner), trazer de volta Stick (Scott Glenn) e contar o passado de Frank Castle; A direção de arte realmente criou um mundo urbano, palpável, crível; Maquiagem extremamente realista e efeitos especiais dignos tornam a violência brutal em lugar de medíocre; e o figurino, mais tático-militar, mostra o quanto a trilogia do Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan ainda é influente.
A enigma principal da segunda metade da temporada gira em torno da misteriosa organização criminosa conhecida como A Mão, que busca um artefato chamado Céu Negro. É uma trama envolvente que surpreende e conta com uma conclusão satisfatória, mas é fechada em si, não gera os questionamentos da primeira metade. Meu bloco de notas praticamente descansou nestes episódios. Só resta recomendar que seja assistida, pois é impossível falar dela sem spoilers, o que não é a proposta desta crítica.
No embate Demolidor x Justiceiro, temos a tendência, quase a tentação de escolher um lado: se este impede que bandidos irrecuperáveis voltem a cometer crimes, aquele não corre o risco de perder o controle e matar um inocente. Mas não nos enganemos. Não existem mocinhos nessa história. O que difere um do outro são os limites autoimpostos. O Demolidor não mata, mas não tem nenhum pudor para amedrontar ou quebrar ossos de potenciais informantes para que eles respondam aos seus interrogatórios. Frank só mata bandidos porque apenas bandidos se colocaram em seu caminho até agora. Como ele próprio diz ao Demolidor, “você está a um dia ruim de ser eu”. Heróis são produto de um mundo corrompido e não deveriam existir, pra princípio de conversa. Entender que as instituições são as responsáveis por garantir nossa humanidade e fazer o possível para fortalecê-las é o verdadeiro heroísmo. Por demonstrar tudo isso, Demolidor é simplesmente imperdível. Já estou ansioso pela terceira temporada (sim, teremos uma terceira temporada.