Crítica da segunda temporada de “Desventuras em Série”. Para ler sobre a season premiere, clique aqui.
A segunda temporada de “Desventuras em Série”, tal qual a primeira, não é ideal para uma “maratona”. De fato, a cada dois episódios (ou um livro da série de Lemony Snicket), a estrutura narrativa basicamente se repete. Violet, Klaus e Sunny (respectivamente Malina Weissman, Louis Hynes e Presley Smith) tentam reconstruir sua vida e Conde Olaf (Neil Patrick Harris), em esquemas tão mirabolantes quanto absurdos, os persegue para roubar a herança deixada pelos pais dos órfãos Baudelaire. Ninguém acredita nas crianças, que precisam resolver tudo sozinhas, e o vilão sempre escapa. A primeira metade da temporada segue esta fórmula e, realmente, cansa quando vista ininterruptamente.
Existem, contudo, três aspectos que fazem de “Desventuras em Série” uma produção audaciosa, fora da vala comum das comédias infantis. O primeiro, e mais difícil de defender, é a importância secundária que a série dá à trama principal, dividindo os episódios em múltiplas esquetes. O segundo, a mudança de tom que adota a partir do sexto episódio. Por último, mas não menos importante, “Desventuras” não tem vergonha de zombar das convenções de gênero no audiovisual, tornando tudo – tudo mesmo – em potenciais piadas.
Apenas nesta segunda temporada, Violet, Klaus e Sunny estiveram em um colégio interno, uma cobertura luxuosa e uma cidadezinha do interior. Também passaram por um hospital e um circo. Se, independente do lugar, a história se resume ao Conde Olaf perseguindo e sendo derrotado pelos órfãos, então o foco da série não está na trama, mas nos diferentes lugares onde ela transcorre. Por acontecer em tantos lugares diferentes, a trama recorrente se torna uma virtude, pois indica que os infortúnios dos Baudelaire não são resultado de um esquema refinado de Olaf, ou ainda de um descuido por parte deles. Os três são vítimas das formas mais puras de descaso e ignorância daqueles que os cercam, facilmente manipulados por um discurso ilógico que não faz nada além de justificar tal descaso, “eximindo” a todos da culpa.
A forma como os roteiristas Daniel Handler (o próprio Lemony Snicket), Joe Tracz, Sigrid Gilmer e Joshua Conkel justificam o desamparo dos Baudelaire ultrapassa a barreira da sátira – leia mais sobre a aplicação da sátira como ferramenta narrativa aqui – e entra no território do absurdo camusiano, onde é impossível encontrar sentido na realidade, em si desprovida de qualquer sentido. Isso abre possibilidade para se criticar a nossa sociedade em múltiplas frentes: o sistema educacional anacrônico, a imprensa irresponsável e a burocracia estúpida, por exemplo. Personagens se tornam vetores deste sistema, seja para aplicá-lo ou para sofrer as consequência de sua crueldade. E “Desventuras em Série” tem como um dos pontos altos a apresentação – e o eventual descarte – de novos personagens para exemplificar como o sistema funciona.
Quando chega à segunda metade, a temporada de “Desventuras” tem uma mudança de tom perceptível. Olaf vira, enfim, um vilão a se temer. Neil Patrick Harris, até então preso numa caricatura da atuação de Jim Carrey no filme de 2004, entrega algo de novo e corresponde bem. E a mudança no entorno, de negligente para abertamente hostil, está em consonância com pequenas pistas inseridas ao longo dos dez episódios.
Em “O Espetáculo Carnívoro”, Violet diz algo poderoso: pessoas à margem da sociedade são capazes de atos de maldade se, em troca, lhes for oferecido um tratamento mais humano. Nos campos de concentração, judeus aceitavam retirar das câmaras de gás e cremar os corpos dos próprios familiares em troca de uma melhor alimentação e de mais alguns dias de vida, mesmo que essa vida fosse praticamente tão miserável e sem perspectiva do que as dos demais. A principal dominação não se dava pela força, mas pela mente.
A série se torna cômica por fazer piadas com todos os clichês do storytelling. É um recurso traiçoeiro, pois ironizar saídas manjadas de produções do gênero não pode servir como desculpa para ser preguiçoso no próprio roteiro. “Desventuras em Série” exagera em alguns momentos. Mas há soluções que são ouro puro, como o arenque vermelho, o MacGuffin, o deus ex machina e o cliffhanger. A Direção de Arte também se preocupa com a coesão interna do universo. Por exemplo: os figurinos de Esmé (Lucy Punch) e Olivia (Sara Rue), em inúmeras ocasiões, são predominantemente de cores complementares. Estas, além de simbolicamente representarem opostos, têm a particularidade de se neutralizarem na mistura.
“Desventuras em Série” pode não ser o binge watching que tanto cativa os assinantes da Netflix. Mas quem não “olhar pro lado”, como a música da abertura pede, pode se deparar com uma obra instigante e digna de reflexão. Com boas risadas, porque ninguém é de ferro.
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