O documentário de Eduardo Coutinho começa com a câmera de segurança do prédio mostrando o próprio diretor e sua equipe adentrando o Master e andando por seus corredores. Ouvimos falatório, informalidade. Isso é uma equipe de filmagem e isso é um filme. Logo entra a narração em off de Coutinho contando o que foram fazer ali: filmar o Master e entrevistar seus moradores, porteiro e síndico por uma semana.
A primeira entrevistada de Coutinho é uma senhora que mora há muitos anos no prédio e mudou-se inúmeras vezes, mas sempre dentro do Master; é ela quem diz que teve uma vida de cigana mas dentro do mesmo edifício. Quando um filme de documentário é feito, a visão do diretor também está ali, por mais que aquelas palavras não sejam diretamente dele, é ele quem escolhe o que botar no filme, a ordem que aqueles discursos serão dispostos no filme, os cortes nas falas. Sendo esse primeiro discurso bem descritivo, você se familiariza com o Master e com a visão da senhora: “Aqui é um antro de perdição”, ela comenta sobre prostituição e libertinagem que acontecia no prédio, que nos é apresentado como um lugar que não é privilegiado, ali não mora uma alta sociedade. Um dos entrevistados de Coutinho se refere ao Master como “um desses prédios de Copacabana”, claramente o diminuindo por não ser um lugar de requinte, pois é um conjugado com 23 apartamentos por andar e mais de 500 moradores.
Desde o início vemos imagens da equipe transitando os corredores, batendo as portas, entrando nas casas, se apresentando para os moradores; nós conseguimos ver a interação das pessoas que estão no lugar de entrevistadores e as pessoas que serão ouvidas, que contarão suas histórias e falarão suas memórias e dia-a-dia; são elas que importam, esses relatos são o objetivo do filme. Então, vendo essa equipe indo e vindo, aparecendo na frente das câmeras, somos lembrados a todo momento que aquilo é um filme documental, aquelas pessoas estão ali interessadas em ouvir e ouvir para além da audição, se importar com o que está sendo dito, dar espaço e atenção. Nenhuma dessas pessoas, equipe e Coutinho, estão de fato incluídos no contexto do Master, mesmo que tenham alugado um apartamento para se instalarem por um mês. Eles estão ali como ouvintes e por mais que tenham se familiarizado com a vida ali, não é a realidade deles.
Há vários recortes, mesmo que sutis, nos assuntos abordados no documentário. Logo no início o tema da solidão nos é apresentado. O primeiro relato que fala sobre o tema termina com imagens dos corredores do prédio. Diversos entrevistados – que, vale lembrar, têm seus nomes escritos na tela na hora de suas falas – contam como se sentem sozinhos mesmo estando num lugar com muitas pessoas, o prédio em si e o bairro de Copacabana. Ouvimos pelo menos duas senhoras falando sobre o desejo de se jogar da janela. Começamos a ver o Master e Copacabana como um lugar triste, cansado, sozinho e abandonado por Deus. “Não gosto de Copacabana, me sinto presa”. O bairro é apresentado como um lugar muito cheio e de aglomerações, que conseguimos identificar, conhecendo-o fisicamente ou não, como um lugar diverso. As opiniões variam entre achar que Copacabana é um lugar cheio, ao mesmo tempo que solitário; o edifício é gigante e cheio de apartamentos ao mesmo tempo que pessoas se sentem presas lá.
Por vezes ouvimos em voz off as perguntas de Coutinho aos entrevistados, conferindo um tom de conversa e informalidade ao filme, juntamente com outros elementos, como a figura do mesmo sendo mostrada em alguns momentos. Uma das personagens é uma senhora espanhola com um discurso preconceituoso e de certa forma raivoso, mas o espaço da entrevista não é um lugar para julgamentos, ninguém irá repreender verbalmente aquela senhora ou discordar dela. É reconhecido o local de estudo antropológico, a escuta, o exercício da empatia; sabemos que Coutinho não concorda com ela (pois dá ênfase nas perguntas dela mostrando um sutil desprezo pelo discurso), mas ainda assim ele ouve e respeita o espaço que aquela senhora tem para expressar sua opinião. Coutinho poderia facilmente tirar todo discurso que não concordasse do filme, mas aí o mesmo perderia sua autenticidade.
Muitos dos escolhidos para protagonizarem Edifício Master são pessoas que se expressam através da arte, muitas entrevistas são marcadas por números musicais – alguns pedidos pelo próprio Coutinho e equipe, alguns por iniciativa dos entrevistados –, nos quais cantam canções que fizeram parte da sua vida há 60 anos, por exemplo, ou de épocas de glórias passadas, ou são jovens curitibanos querendo passar mensagens através de suas músicas, ou então são poetisas, poetas, pintores. Há o interesse de fazer a expressão artística ser um dos recortes do filme, reconhecendo a arte como meio de relato de memórias, sentimentos, são histórias guardadas assim como aquelas que estão sendo contadas no filme.
Um dos entrevistados, que é um ex-morador da zona norte que mudou-se para a zona sul, aponta diferenças entre a vivência onde morava e em Copacabana e diz que nesse bairro vive muito isolado porque cada um está trancado no seu apartamento, que às vezes não sabe de morte de vizinhos, apenas se ficar algumas semanas sem notícias da pessoa. Já a próxima entrevistada, que aparentemente é uma mulher de família rica (ganhou o apartamento do pai), diz que consegue ouvir tudo que seus vizinhos falam e fazem, que ela gostaria de isolar as passagens de som do apartamento, que fica incomodada. Ela expressa seu descontentamento dizendo que “Copacabana é aterrorizante.” É mais uma das entrevistadas que engravidou na adolescência e não abortou. Há no mínimo três mulheres com a mesma história que contam seus relatos no filme, mas diferente das outras, essa veio de uma família rica. Percebe-se que há uma distância entre ela e os outros moradores do prédio e arredores. “Antropologicamente é interessante, mas adoraria matar quem esbarra em mim, os ambulantes”, diz a personagem.
Todas as entrevistas estão pensadamente colocadas no filme, no sentido da montagem, mas nessas vemos uma dualidade direta do discurso. Para quem vem de fora, do subúrbio ou da periferia, falta intimidade, calor humano, afeto; para quem vem de lugares abastados, a experiência de se viver no Master é aterrorizante, falta requinte. Logo após ouvimos uma estudante que conta como ouvir as vozes da família e de uma menina que mora perto do seu apartamento desperta muito seu interesse e curiosidade, ela pegou como seu objetivo pessoal achar quem era a menina que ela ouvia sendo chamada através das paredes e com esse relato singelo e corriqueiro as entrevistas são terminadas. É uma pessoa que não se importa de ouvir o que seus vizinhos estão falando, ela criou uma relação de carinho com a situação. Coutinho mostra imagens do edifício Master, janelas, salas, corredores e então planos ponto de vista de pessoas dentro de seus apartamentos através das janelas, fechando as cortinas, apagando as luzes. O Master dorme, encerra-se a jornada no local que se permite viver muitas vidas em uma.