Agente funerária, escritora e YouTuber. Com esse perfil, é difícil para Caitlin Doughty não chamar a atenção. Aos 34 anos, 11 dedicados aos assuntos da morte, a havaiana de O’ahu coleciona uma legião de fãs pela forma franca com que aborda o tema. E alguns desafetos na indústria funerária dos Estados Unidos, pelo mesmo motivo.
Conversei com Caitlin via chamada de voz (problemas médicos inviabilizaram que a autora comparecesse à entrevista presencial previamente marcada). O conteúdo final foi publicado em duas partes. Aqui, falamos sobre seu livro mais recente: “Para toda a eternidade”, publicado no Brasil pela DarkSide Books (leia a crítica aqui).
Enquanto eu lia “Para Toda A Eternidade”, percebi que não sabia praticamente nada a respeito das tradições funerárias no Brasil. Acredito que a maioria dos meus amigos também não. Eu não tenho nenhum problema para falar sobre isso, mas o assunto simplesmente não está disponível. Por que as pessoas evitam falar da morte com tanto empenho?
Eu acredito que seja uma combinação de fatores. A “indústria funerária”, que está presente nos Estados Unidos, assim como no Brasil, tem parte da culpa. Em certo ponto (da História) eles surgiram e assumiram algo que era lidado diretamente pela família: durante muito tempo, o cadáver era transferido, preparado e enterrado pela família, tanto nos EUA quanto no Brasil. E a indústria funerária criou algo pelo que você paga! Eles pegam o corpo, cuidam da papelada e então eles o enterram ou cremam. Isso é feito por um profissional, não pela família.
Não é surpreendente que nem você ou seus amigos saibam o que acontece, porque não há muito para você se envolver! Exceto que a família deveria se envolver mais, sabe? É fácil pagar alguém para fazer tudo, mas isso não nos ajuda, culturalmente, ao longo do tempo.
Não sei se essa é a palavra adequada, mas você descreve no seu livro uma espécie de lobby da indústria funerária. Você é quase um “Mister M da Morte”, falando do assunto e revelando “segredos ocultos” do ramo. Qual a sua relação com os operadores mais “tradicionais” do meio? Eles gostam de você?
(Risos) Oh, sabe? Muitos não gostam. Mas muitos gostam! Mas muitos não gostam! Eu divido muito as opiniões. Algo que eu achei muito legal, que eu realmente amei ao estar no Brasil, foi que estive com diretores funerários aí e eles foram muito respeitosos não apenas em relação às minhas ideias, mas também em relação às da Katrina Spade, que foi quem introduziu a compostagem humana. Eles fizeram várias perguntas e se envolveram de verdade. Isso não é algo que nós temos no “establishment” da indústria funerária nos EUA.
Eu sei que você deve imaginar que a indústria funerária brasileira é bem tradicional – e provavelmente é –, mas ainda está muito à frente da indústria funerária nos EUA nesse aspecto.
Na abertura ao diálogo?
Aqui (nos EUA) se evita falar sobre o que acontece mesmo durante uma cremação ou um embalsamamento, coisas básicas que as pessoas deveriam saber quando enviam suas mães para serem cremadas ou embalsamadas!
Eles se enfurecem comigo por falar sobre isso. Porque eles pensam que não é “digno” as pessoas saberem o que está acontecendo. Eu acho que há dignidade em saber, em ter um entendimento completo do processo.
Eu não acho que as pessoas sejam bebês. Elas aguentam, e querem saber o que está acontecendo. É o que eu tento fazer.
Uma constante no seu livro são os vínculos entre vivos e mortos muito mais próximos e fortes em relação ao que estamos acostumados na nossa cultura. Quanto se pode aprender sobre uma cultura ao observar estas relações entre vivos e mortos?
Muito! Nos Estados Unidos, nós mal vemos o corpo, pra início de conversa. Se vemos, não é por muito mais do que uma hora. Nós andamos em torno do caixão, damos uma olhada no corpo, tocamos na sua mão e é isso.
Olhando para outras culturas, existem relações não apenas com o corpo no pós-morte, mas com o cadáver em si, anos após o funeral: limpando os ossos e o crânio, ou então mantendo uma múmia limpa e trocando as suas roupas. E são todos rituais respeitosos! Eu fico muito irritada quando alguém os insulta! Ou quando falam coisas como “oh, isso não é digno”, “deixem os mortos descansarem em paz”. Isso é nojento.
Um problema que temos, em geral, é fingir que outras culturas não são tão inteligentes ou desenvolvidas quanto a nossa. Esse é um problema que nós temos aqui nos EUA e eu tenho certeza que vocês têm isso no Brasil também.
Totalmente.
Nós pensamos que fazemos as coisas do jeito certo. E esse não é o jeito certo de encarar a questão! Você tem que manter sua mente aberta e processar o que você aprende com outras culturas. Não apenas sobre a morte, mas sobre todo o resto.
Mais do que uma humanização, os mortos do seu livro passam por um processo de “re-humanização”, se tornando algo completamente diferente do que eram em vida, especialmente as ñatitas bolivianas. Quão transformador é testemunhar essa nova, literalmente, vida após a morte?
Os bolivianos adotam crânios de pessoas que eles sequer conhecem e lhes dão uma nova identidade, é quase como falar com o “além”. Você pode olhar de uma forma cínica e dizer “ok, são só umas velhas com umas caveiras”, mas o que elas estão fazendo ali, e isso teve um efeito muito poderoso em mim, é subverter a Igreja! Elas estão dizendo: “eu não preciso de um padre para quem eu tenho que dar dinheiro, nem tenho de fazer todas essas coisas para falar com Deus, eu posso chegar a Deus diretamente por esse crânio”.
As pessoas usam as ñatitas para falar com Deus sobre assuntos que padres podem achar muito triviais para serem levados a Ele, como a vida amorosa ou a financeira. E essas caveiras ajudam no dia a dia dessas pessoas!
Na segunda parte da entrevista, Caitlin Doughty fala sobre os fãs, os tabus da morte e a melhor forma de superá-los. Clique aqui para ler!