Plano Aberto

Entrevista com Gabriela Amaral Almeida, diretora de “A Sombra do Pai”

A diretora Gabriela Amaral Almeida tem uma bem-sucedida trajetória nos curtas-metragens e, com “A Sombra do Pai”, chega a seu segundo longa. “O Animal Cordial”, o primeiro, passou pelo circuito comercial recentemente. Cinéfila, fã de cinema de horror e realizadora de filmes que dialogam com esse gênero, Gabriela conversou com o Plano Aberto durante o 51º Festival de Brasília, no dia seguinte à exibição de “A Sombra do Pai”.

Seu filme fala de luto, lida com personagens que perderam recentemente pessoas próximas. Mas há também, no segmento da história que acompanha o personagem de Júlio Machado, o luto da perda do emprego. Você diria que há na concepção do filme um esforço consciente para relacionar o drama pessoal dos personagens com o momento que o país vive?

Eu acho que sempre há, porque a gente não vive à parte do mundo quando faz um filme, eu acredito. A gente vive a realidade que está no entorno. Ou seja, não é um filme de tubo de ensaio, de estúdio, nesse sentido. Eu entendo a sua pergunta, não é um filme que cria uma narrativa independente do que está acontecendo durante a criação dessa narrativa, que seria o clássico filme de estúdio, que eu acho que a gente não tem muita tradição fora as comédias globais, que eu acho que são filmes bastante questionáveis. Então é quase como se eu estivesse dentro de uma realidade de produção que me conduzisse a pensar qualquer história sob a perspectiva do tempo que se vive, porque finalmente a gente está começando a exercer democraticamente a nossa fala, isso está na pauta da nossa existência hoje. Imagina nos anos 1980, isso não existia. E é muito difícil ignorar quando você está vivendo esse processo, é muito difícil não levar isso para a encenação, mesmo que a criação surja basicamente do humano para mim. Do universal, do sentimento de tristeza, de abandono… dos sentimentos. Mas esses seres ocupam uma realidade. Eu citei até o [Jonathan] Frazen, que é um escritor que eu gosto muito. Muita gente o chama de escritor político, porque o centro do drama nos livros do Frazen é o capitalismo e como esses personagens afetivamente, humanamente, se relacionam apesar do capitalismo, ou por causa do capitalismo, ou contando com o capitalismo. A gente não pode ignorar isso num personagem moderno, sabe? Não dá mais. Não dá para, no espírito do nosso tempo, achar que a gente pode ainda fazer um filme de estúdio dos anos 1950. Não sei se fica claro.

Você já trabalhou algumas vezes com o gênero horror e “A Sombra do Pai” é mais um caso. Você vê o gênero horror como um meio para falar dessas questões políticas e até da mente humana?

Sempre vi. Quando a gente vai em retrospectiva estudar o horror, ele é claramente uma resposta, mesmo que gere filmes ruins e bons, mas ele, enquanto gênero formativo, ele é uma resposta ao que acontece na época. Desde o gótico, ali no Iluminismo, quando a ciência ameaçava tomar conta das coisas e isso amedrontava o homem, até os filmes do pós-guerra, do pavor da deformidade, da bomba atômica. É quase como se o artista que se vale desse meio para contar histórias capturasse, não sempre conscientemente, a sensação de temor que antecede a vinda de uma nova etapa. Nesses momentos o horror atinge o ápice de produção, de criatividade, de poesia. Então não é uma coisa que a gente está inventando, é uma coisa que historicamente você pode mapear, a força desse gênero de acordo com o que existe no mundo, no entorno social, quando eles [os filmes de horror] são feitos. Então, curiosamente sim, são filmes extremamente políticos. O próprio Romero com os zumbis, que é uma criação dele, esse “zumbi branco”, quando ele faz “A Noite dos Mortos Vivos”, que eu uso no filme, é a primeira vez que um protagonista negro é herói de um filme desses. E uma horda de homens brancos e mulheres brancas que têm que ser combatidos. Isso é extremamente político. A seleção de casting, isso é político. Agora, isso não vai para a consciência do texto, nem para a consciência dos personagens, isso é uma inferência. As obras que mais me interessam são essas: você está ali conectado não só a essa ideia, você está conectado às emoções desse personagem, que é o mais caro a quem trabalha com gênero.

No caso do Romero, a própria cena final do filme tem essa horda de homens brancos, que não são zumbis, mas esses rednecks que vão ali matar o protagonista…

Pois é, é assustador pensar zumbis rednecks, não é? É visionário por isso, a gente está vivendo nos Estados Unidos o que ele [Romero] previu com um simples filme de zumbi. É uma massa de manobra demente, sem cérebro.  

Você referencia abertamente alguns filmes de horror que falam da volta de pessoas mortas. Os personagens assistem “Cemitério Maldito” e “A Noite dos Mortos Vivos” na TV e eu acho que há uma ou outra referência visual e temática a “Um Corpo que Cai”…

Não consciente. Mas com certeza, não inventei aquilo não, aquilo estava no inconsciente, mas não é um plano de execução de citação, sabe? É diferente. Eu chego aí por outra via, mas posso chegar ao mesmo lugar que você. Só que o processo de criação disso não é de colagem, porque isso me engessa, começa a ter cara de tese e começa a engessar tudo. Então eu não trabalho com referência não é por eu desprezar o que veio antes, pelo contrário, é para dar aos colaboradores a chance, e a mim também como colaboradora, de me entender como ser humano através do exercício daquela função, que esse é o papel de quem faz arte. Não é só colar referência, isso está mais para publicidade do que para cinema. Então eu tenho muito medo de citar referências cinematográficas ou ver filme para filmar. Vejo filmes constantemente e eles vão sendo estocados em algum lugar da minha cabeça. E não é um lugar de aplicabilidade.

Gostaria que você falasse um pouco da relação de “A Sombra do Pai” com esses filmes (e outros que eventualmente lhe influenciam).

São tantos, o Douglas Sirk é um cineasta que me influencia muito, que é um cineasta de melodrama, um austríaco que migra para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra. E a ele é dada a chance de fazer melodramas e a grande inteligência dele é contradizer o próprio texto de melodrama com a câmera. Então os personagens, enquanto estão falando que estão felizes, que encontraram o amor de suas vidas, estão completamente aprisionados. É um contraponto que causa uma fricção que faz com que a obra dele se eleve, não fique no melodrama barato, vai para um outro lugar. A impossibilidade do melodrama, a impossibilidade da felicidade, é isso que ele narra com a câmera. Então ele é um cineasta que eu gosto muito. O [Aki] Kaurismaki é um cineasta de agora que me influencia muito na coisa do patético, da atuação patética. Eu acho que o patético é a faceta mais humana do humano. É quando a gente, numa cena para chorar, ri, numa cena para rir, chora. É quando a gente se desloca da situação, a gente gera o patético. Então acho que essa é uma coisa que o Kaurismaki faz brilhantemente e que me influencia muito.   

E nesse próprio filme você acha que eles estão presentes?

Estão presentes na maneira como eu dirijo os atores, na fisicalidade com que eu dirijo os atores. Eu gosto muito de trabalhar com atores de teatro que façam clown, com uma linguagem de corpo e eu diminuo isso. A Luciana Paes é um exemplo disso, é uma personagem que tem uma consciência de corpo que faz com que nossa parceria seja quase dança, quase coreografia. E a relação dos dois filmes com “A Sombra do Pai”, eu acho que a imagem deles rasgando o filme autoriza a própria linguagem em formação do filme que eu estou contando. É como se eu expusesse ali a fonte da minha própria inspiração ou a fonte da inspiração da própria personagem Dalva [interpretada por Nina Medeiros]. Eu estou fazendo um filme de zumbi também, só que de outro jeito. Mas está ali a fonte.

São filmes que de alguma forma falam sobre mortos que voltam, não é? Por isso também eu pensei em “Um Corpo que Cai”. As sequências que se passam na obra, há dois planos específicos, o plano em que ele se joga e o plano em que ele desce correndo as escadas, que me trouxeram essa referência à mente…

Total, eu vi Hitchcock mais do que qualquer coisa na vida, então já está tão introjetado, é tipo dirigir, sabe, você não olha mais para a marcha? Então acho que essa é uma analogia interessante, você não olha mais, vai no automático.

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