Pouco tempo depois do grande sucesso de The Last Of Us, a nova adaptação de jogos de videogame, Fallout, vê a luz do dia. As comparações entre ambas serão inevitáveis por se tratarem das obras que farão a indústria olhar de forma distinta para o mundo dos jogos, mas, também, porque Fallout faz o inverso de TLOU e aí reside as grandes qualidades da série.
Se a série do Max refaz o caminho do primeiro jogo tirando a agência, ou seja, o controle do jogador, a do Prime Video prefere enxergar as possibilidades dramáticas que o já estabelecido mundo retratado contém. Em uma entrevista, Todd Howard, diretor e produtor executivo tanto dos jogos quanto da série de Fallout, diz que a série é basicamente a nova “instalação” de seu universo. Isso diz não somente que é canônico (o quê, honestamente, importa muito pouco), mas ainda é Fallout, apenas apresentado de outra forma.
E essa forma não é à toa. A série não apenas ilustra elementos dos jogos com uma câmera, mas pensa esses elementos a partir de uma iconografia do audiovisual americano: o deserto, os cowboys, a empresa maligna, o macarthismo e os bastidores de Hollywood. A origem do Vault Boy, o icônico boneco loiro da franquia, surge nessa lógica, não numa veia de explicar ou como fanservice, mas enxergar que, ali, existe um potencial de explorar visualmente algo importante na mitologia deste universo.
A série funciona como um coming-of-age distorcido. Lucy MacLean decide ir atrás do pai que foi sequestrado por invasores de sua vault, a 33, um bunker projetado para sobreviver ao holocausto nuclear, conhecido como a Grande Guerra, e tem de lidar com o mundo fora de seu controlado cercadinho. Distorcido porque ela já é adulta e não precisa lidar, necessariamente, com um “crescer”, sabemos que ela já fez sexo (com seu primo), é boa em reparos, tiro e inclusive dá aula de história americana com foco em ética. O amadurecimento precisa começar no segundo que ela coloca o pé fora de seu porto seguro e adentra a Ermos.
A Ermos, para Lucy, é o lugar onde ela vai perder a inocência, e o delegado disso é o necrótico, interpretado por Walton Goggins. Essa figura literalmente radioativa que é o reflexo das, até então, escusas razões que levaram os EUA a serem bombardeados. Enquanto a série mostra simultaneamente o passado de sua versão humana, Cooper Howard, um ator da era de ouro Hollywoodiana, famoso por interpretar uma série de cowboy, sendo cooptado por sua mulher para adentrar na loucura das vaults, traça-se um paralelo entre Lucy, no presente, saindo dessas, explorando este novo mundo devastado.
Howard precisa se dobrar às vontades da esposa, que trabalha na Vault-Tec, mas antes de fazê-lo, investiga o funcionamento da estranhíssima empresa e descobre, durante uma caça às bruxas macarthista, que um acordo de paz entre China e EUA é ruim para os negócios, então, o planejamento é eles mesmos soltarem as bombas. É como a Lucy indo atrás do paradeiro de seu pai, tendo que se dobrar às novas regras do mundo e descobrindo que ele é uma engrenagem fundamental para não só o bombardeio original que destruiu os Estados Unidos, mas também a covardia em Shady Sands.
Covardia é, talvez, o subtexto mais aliciante da adaptação, em todas as suas vertentes semânticas. O bombardeio de Shady Sands, comandado por Hank MacLean, se deu porque a mãe de Lucy havia encontrado o propósito das vaults, fora dessas: o retorno da civilização. Hank não concordou, viu Shady Sands como concorrência e lidou com a situação como os grandes tubarões capitalistas fazem, obliterando seus rivais. Covardia como violência contra indefesos.
O irmão de Lucy, Norm, é covarde no sentido de amarelão, daquele que falta coragem. Durante o massacre do primeiro episódio, ele sobrevive por se esconder. E, aqui, a covardia tem um efeito narrativo: a história de Norm, o medroso, se desenrola como uma investigação slowburn sobre o mistério das Vaults 31, 32 e 33. Em dado momento, Norm diz para seu primo, Chet, que se eles não investigarem o que está acontecendo, é um ato de covardia. Chet responde que sim, são covardes, do contrário, não estariam escondidos em vaults subterrâneas.
A falta de coragem afeta também a Irmandade do Aço, a organização militar pós-nuclear que busca tecnologia pré-Grande Guerra. O outro protagonista da série, Maximus, é um integrante do quasi-culto que, logo no início, demonstra estar infestado de covardice. Um de seus melhores amigos, Dane, ao ser promovido para escudeiro de cavaleiro, sofre uma agressão, uma lâmina em sua bota, que o impede de prosseguir na função. Descobre-se mais tarde que foi o próprio quem a implantou ali, por medo de ocupar o novo cargo.
Quando o caminho de Maximus encontra o de Lucy, ela o admira pelo que ele não é, já que ele utiliza a armadura de seu Cavaleiro, Titus, quem Maximus deixou para morrer e assim assumir seu posto. As interações entre ambos funcionam sempre como uma encenação por parte dele, agindo como alguém em controle das bizarras situações que são enfrentadas, mas, no fundo, ele está tão ou mais assustado quanto ela. A ideia de um coming-of-age distorcido retorna em Maximus, que precisa crescer para longe da Irmandade e, vendo-a de fora, percebe que se trata de um movimento ideológico que atrai jovens frágeis como ele e os massacra enquanto fazem o trabalho sujo, e não são os metálicos heróis de armadura prestes a salvar o mundo.
Já que possui uma mitologia muito particular, com cenários pós apocalípticos embalados por música cinquentista, é preciso um trato cuidadoso para que tudo funcione. Quando Jonathan Nolan está na direção, a sensação é de que ele mais dispõe os elementos do que os articula. Quando outros diretores assumem, o humor e a ação aterrissam melhor, a série ganha contornos dramáticos crescentes e o simples aparecer de alguém com apenas um olho é dos momentos mais tensos durante os longos oito episódios.
O supracitado passado de Cooper Howard, em uma Los Angeles retro futurista, dialoga com o período de caça aos comunistas e conspirações verdadeiras acerca da postura governamental durante a tensão da guerra, sempre exprimindo com elegância e uma esquisitice inerente toda essa ambientação através de pequenas ações, como no diálogo entre dois atores que participaram da mesma produção, referenciando seus personagens como metáforas para o que verdadeiramente acontece no momento.
O final-que-não-é-um-final, prática infelizmente comum no audiovisual contemporâneo, mostra-nos o próximo passo da série: New Vegas. Personagens mostrados en passant na primeira temporada provavelmente retornarão e uma nova ambientação será explorada, porém, o que mais anima no já confirmado segundo ano é que um novo lugar, por tudo que a série já mostrou, não é só um pano de fundo com estética diferente, mas infinitas possibilidades de dramas, piadas e subtextos que nenhuma outra produção poderia conceber.