Por Gabriel Caetano
“No início do século XX, uma proeminente família desfruta de um Natal unido, em festa e alegria. Após as festividades, Oscar, pai de Fanny e Alexander sofre um mal súbito enquanto representava o fantasma da peça de Hamlet em seu teatro. Alguns meses após a tragédia, Emilie, viúva de Oscar aceita o pedido de casamento do bispo Edvard que se torna um severo padrasto para crianças numa união que viria a ser demasiadamente infeliz. Ela, que se casava novamente por amor, se engana a respeito do tipo de homem que Edvard é, se arrepende, e nem como mãe consegue proteger suas crianças perante seu novo marido.”
Ingmar Bergman foi um autor distinto para o cinema. Autor, como descreviam os críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma para distinguir cineastas cuja obra tem a força de uma afirmação pessoal em termos de estilo. Ficou reconhecido como um artista que trata do lado excruciante da humanidade, da essência do sofrimento, da ausência de Deus, enfim, da investigação da alma. A valer, o cinema de Bergman é algo absurdamente vasto e à medida que sua obra é discutida, mais contornos e temas são atribuídos aos seus filmes – inclusive os menos pretensiosos da década de 50. Sempre com uma pertinente leitura sobre o mundo em seu tempo. Bergman traz do teatro uma paixão rara expressa em movimento. Tem alguns de seus melhores filmes enraizados em elementos oníricos (e icônicos, como a figura da Morte em “O Sétimo Selo” e a sequência de abertura em “Persona”, que reapresenta Jörgen Lindström, a criança de “O Silêncio”), elementos que em “Fanny & Alexander” são o elo de conexão do receptor com próprio o Bergman. Como autor, ninguém mais além dele poderia dirigir “Morangos Silvestres”, “A Hora do Lobo”, “Gritos e Sussuros”, sobretudo: ninguém mais poderia conceber e dirigir “Fanny & Alexander”.
A densidão da obra de Bergman está simetricamente ligada à sua história, particularmente dois temas recorrentes em toda a sua filmografia: religião e família, mais especificamente, casamento. Em “Fanny & Alexander”, ele mais uma vez levanta sua trama principal com base nesses temas para traçar uma obra parcialmente autobiográfica. Fato que fica explícito ao ambientar sua história numa cidade que recria “Upsália” – o berço do diretor. Isak Jacobi, o judeu dono do antiquário também existiu na infância de Bergman, conforme revelado no documentário “Uma Tapeçaria Bergmaniana”. O autor apresenta Alexander como sua persona dentro da narrativa: a relação da criança com o teatro, o passado tomado pela influência e educação cristãs (seu pai fora um austero pastor luterano) e mais, a forte presença feminina em sua família e criação atestam isso. O trabalho de Bergman é reflexo de quem é Ingmar Bergman e quais são as suas crenças, sendo assim, indissociáveis aos seus filmes – este, de alguma maneira, é ainda mais especial.
“Para Bergman, estar só é fazer perguntas; filmar é encontrar as respostas. Nada poderia ser mais classicamente romântico”.
“Bergomanorama” – Jean-Luc Godard, Cahiers du Cinéma (Julho de 1958)
O filme, que pode ser observado como uma análise de comportamento no seio familiar e também se volta para o amor – especialmente materno. Todos se mascaram durante as festividades, enquanto os conflitos acontecem isolados, dentro dos quartos, os pequenos universos cuidadosamente planejados por Anna Asp, diretora de arte e, mais uma vez, impecavelmente iluminados por Sven Nykvist, diretor de fotografia. A opressão religiosa é sempre presente, no momento mais simbólico, quando Alexander está trancado no porão com uma enorme imagem de Jesus crucificado ao fundo – tombado – enquanto é consolado por sua mãe. Decorrência de quem é Bergman, e que mais uma vez, faz uma provocação ao comportamento do religioso lobo em pele de cordeiro. O diretor já escreveu sobre sua conturbada relação com pai em sua autobiografia “Lanterna Mágica”, são estes os pontos que identificam a realidade em “Fanny & Alexander”.
Enquanto essa realidade é imposta, as soluções se apresentam nas fantasias de Alexander. Elas exorcizam todo o mal que lhes ocorre – o medo, a solidão, mas outras vezes também os intensificam. Como ocorre na casa de Jacobi entre as paredes repletas de máscaras e bonecos além da presença de Aron. Toda a fantasia não serve apenas como alívio em meio às tragédias da história, são a relação sinérgica entre realidade e mentira precisamente apresentadas nos trechos de “O Sonho”, peça teatral de August Strindberg lidos por Gunn Wallgren no remate da película. Ela resgata Oscar – seu pai que em seu leito de morte sussurra sobre não ter mais que interpretar um fantasma em sua peça – de volta para o filme… como um fantasma. Esses episódios são guiados por mudanças que vão se destrinchando conforme a história é contada: no começo, com tons de contos de fada, na casa do bispo Edvard, um ambiente cinza e repleto de cruzes e crucifixos – é neste cenário que o toque onírico mais assimila a uma intervenção superior durante o resgate das crianças.
“O filme é um sonho, como a música. Nenhuma arte passa à nossa consciência da maneira que um filme o faz. Ele vai diretamente aos nossos sentimentos e toca o fundo de nossas almas”.
O cinema é a arte que detém as maiores possibilidades sensoriais a serem trabalhadas com o público, e são mínimos os filmes que fazem o melhor uso de pelos menos alguns desses recursos. Muitas vezes se valendo de gêneros como a ficção científica e o horror. A narrativa onírica é, nesse filme, uma explanação sobre o poder da imaginação – personificada por Alexander –, sobre a imaginação como instrumento de salvação e sobre a importância das mentes imaginativas como vanguarda artística. Se valendo dessa ideia, Woody Allen homenageia tanto Bergman quanto Fellini no filme “Memórias”, quando faz o mesmo numa película em preto e branco.
“Mentira e realidade são uma coisa só. Tudo pode acontecer. Tudo é sonho e verdade. Tempo e espaço não existem. Sobre a frágil base da realidade, a imaginação tece sua teia e desenha novas formas, novos destinos”.
“O Sonho” – August Strindberg, trecho lido por Helena Ekdahl, personagem de Gunn Wallgren
“Fanny & Alexander” há de ser apreciado por cada um de seus belíssimos fotogramas e cativante história, mas sua essência está na abstração, no pensamento. Bergman é um pensador que faz cinema, um sonhador em sua essência que encontra saídas para um mundo aparentemente perdido. Ele nos ensina a valorizarmos nossas companhias, e não atoa, respeita tanto o casamento em seus filmes – embora hajam apropriadas críticas ao papel da mulher em sua obra – é indiscutível como seus filmes conseguem expressar em meio a polifonia de sua mensagem a esperança. E como ele está tanto dentro, como fora do filme. Bergman é Alexander e Bergman é o fio condutor de uma poesia. Uma mágica poesia que cumpre um dos propósitos da arte: questionar a vida e seus maiores absurdos.