Plano Aberto

Fiuk, Neville D’Almeida e o “Anti-Nelson Rodrigues”

Em abril de 2021, poucos dias antes da edição anual do Big Brother Brasil chegar ao fim, foi publicado em uma nota pela coluna do jornalista Ancelmo Gois, no O Globo, que o cineasta Neville D’Almeida estaria interessado em escalar um dos finalistas do reality para protagonizar seu mais novo projeto, uma adaptação de “Anti-Nelson Rodrigues”, um dos últimos textos teatrais – e o único autointitulado de maneira tão direta – do dramaturgo mais famoso do Brasil. Na visão do diretor belo-horizontino, o ator, músico e piloto de drift Fiuk seria a escolha ideal para encarnar Osvaldinho, playboy maldoso e irresponsável que aterroriza a vida da própria mãe e empreende desventuras amorosas audaciosas, no tom que se espera de uma peça rodrigueana e com o agravante ainda maior da mediação pelas relações de classe: almeja conquistar uma trabalhadora fabril. Já em julho, na entrevista dada por D’Almeida ao programa Conversa com o Bial, o interesse tornou-se mútuo com a exibição de um clipe onde Fiuk agradece pelo convite do diretor e confirma sua vontade de participar do projeto.

Filho do também cantor e ator Fábio Jr. – lembrado, no que se refere à arte dramática, pelo filme “Bye Bye Brasil” (1980), de Carlos Diegues, e pela telenovela “Corpo Dourado” (1998), de Antônio Calmon – Fiuk já consagrou sua imagem nas telenovelas da Rede Globo e participou de longas como “As Melhores Coisas do Mundo”, de Laís Bodanzky. Em “Anti-Nelson Rodrigues”, no entanto, o ator, atualmente com trinta anos de idade, tem a chance de entregar seu papel cinematográfico definitivo.

No que é relativo à sua aptidão enquanto diretor, Neville D’Almeida tem tudo para dirigir bem um ator como Fiuk. Um atestado para tal está em seu último longa, “A Frente Fria Que  Chuva Traz” (2016).

Adaptado de um texto teatral de Mário Bortolotto (e Neville não é nenhum estranho ao teatro – já adaptou José Vicente, Plínio Marcos e, claro, Nelson Rodrigues), o filme acompanha um grupo de jovens brancos, ricos e displicentes da zona sul carioca que alugam uma laje na comunidade do Vidigal para festejar em meio à favela – até que as coisas gradualmente começam a dar errado. Entre o elenco, nomes em plena ascensão à época e que hoje ocupam papéis centrais nas telenovelas globais, como Chay Suede e Johnny Massaro. O destaque mesmo, no entanto, está em Bruna Linzmeyer, que entrega em “Frente Fria” sua melhor e mais arrebatadora performance ao interpretar Amsterdã, única integrante do grupo que não é bem-nascida, se prostitui para sustentar um vício em entorpecentes e funciona, no filme, como uma agente do caos que expurga sua dor em verdades que atira aos playboys e patricinhas alienados que a cercam.

Fiuk pode, como Linzmeyer em “Frente Fria”, fazer da parceria com Neville (que mostra em seu último longa saber lidar com jovens atores de fama crescente e extrair deles o seu melhor) a oportunidade de ter em seu Osvaldinho um papel marcante e definidor da mesma maneira que a atriz catarinense teve em sua Amsterdã.

Em algumas edições da obra teatral de Nelson Rodrigues (como as mais recentes, publicadas pela editora Nova Froteira), constam, em cada peça, reproduções do programa de estreia das mesmas, com data, direção e a escalação original do elenco. Por meio dessas informações, somadas às adaptações rodrigueanas para o cinema, podemos extrair algumas ideias acerca do que seria um ator tipicamente “rodrigueano” para determinados tipos de personagem. Quando se pensa em nomes como Jece Valadão, Paulo Cesar Peréio e José Wilker – o Osvaldinho original de “Anti-Nelson Rodrigues” – vê-se que Fiuk é um nome natural em meio a essa “linha sucessória” de atores no trabalho de Nelson, dando continuidade a um mesmo estilo de tipo, de jeito, ator, de atuação, que o dramaturgo aprovara em vida em seus castings.

“Anti-Nelson Rodrigues” seria a terceira adaptação da obra do dramaturgo pernambucano capitaneada por D’Almeida, as outras duas realizadas com o escritor ainda vivo e presente – em “Os Sete Gatinhos” (1980), rodada pouco antes de seu falecimento, Nelson acompanhou as filmagens, e na anterior “A Dama do Lotação” (1978), adaptada de um breve conto de sua coluna “A Vida Como Ela É”, participou ativamente ao expandir a história curta para um argumento mais substancial e ocupar a função de dialoguista do filme. Estando entre os diretores que mais filmaram Nelson Rodrigues (Braz Chediak filmou três vezes; Arnaldo Jabor e J.B. Tanko, duas cada, estando portanto empatados com Neville), o cineasta mineiro observou, na declaração cedida à coluna de Gois, que com a realização do “Anti-Nelson Rodrigues”, estaria completando uma espécie de trilogia involuntária. Já se fala em “trilogia rodrigueana”, termo reiterado na entrevista de D’Almeida ao Conversa com o Bial.

Se, em seu novo projeto, o diretor administrar o caos em meio ao microcosmo rodrigueano da maneira como o fez em “Os Sete Gatinhos”, expandir a obra original a um outro patamar como conseguiu em “A Dama do Lotação”, extrair de Fiuk a intensidade que tirou dos atores e atrizes de “A Frente Fria Que a Chuva Traz”, e imprimir no projeto o vigor e a inventividade que permeiam todo o seu cinema, D’Almeida certamente terá no “Anti-Nelson Rodrigues” uma conclusão digna para sua trilogia.

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