Plano Aberto

Harry Potter, meu primeiro amigo de tinta

A primeira edição de Harry Potter e a Pedra Filosofal está completando 20 anos hoje. Escrevi sobre todos os volumes da série no ano passado, quando A Criança Amaldiçoada foi lançado no Brasil. Se você quer uma análise formal dos livros de J.K. Rowling, leia meus textos sobre A Pedra FilosofalA Câmara SecretaO Prisioneiro de AzkabanO Cálice de FogoA Ordem da FênixO Enigma do PríncipeAs Relíquias da Morte. Sem esquecer de A Criança Amaldiçoada, com textos separados sobre o primeiro e o segundo atos da peça. Hoje, vou escrever sobre minha relação particular com a obra. Provavelmente, você se verá em muitas das situações narradas por mim, o que talvez torne o texto relevante. Mas se você não gosta de Harry Potter, melhor nem ler isso. Leia minha crítica do episódio-piloto de GLOW: daqui a pouco, vou publicar a crítica da temporada completa.

Capa da minha edição de “A Pedra”: infelizmente, o original se perdeu para sempre numa mudança (eu não perdi a caixa onde o guardei, mas meu gato a viu e decidiu fazer xixi nela)

Eu lembro claramente de ter visto uma reportagem sobre as crianças ansiosas pelo lançamento do primeiro filme da série (inclusive, participei de um podcast do Psicodoidera falando sobre o seu aniversário de 15 anos em 2016), na época em que apenas quatro dos sete livros já haviam sido publicados. Minha mãe me deu livros de pano quando eu era bebê, pra que eu sempre tratasse a leitura como um divertimento; fui alfabetizado pelo meu avô, que lia histórias em quadrinhos pra mim. Sempre fui a criança que ficava sentada quietinha esperando pelos adultos, bastava ter alguma coisa pra ler. E eu lembro – não lembro o que almocei no sábado, mas lembro disso – do tamanho do quarto livro. Era um novo desafio para uma criança de 11 anos: ler um livro de 500 páginas. Expliquei a situação pra minha mãe e ganhei A Pedra Filosofal naquele mesmo Natal.

Imagem meramente ilustrativa: comecei a ler Harry Potter deitado num sofá

A leitura daquele livro – em poucas páginas, esqueci que comecei aquilo para chegar ao quarto volume e simplesmente apreciei a jornada – me moldou como leitor. Não desmereço os quadrinhos, que leio até hoje, mas foi com Harry Potter que eu aprendi a imaginar. Pela primeira vez na minha vida, éramos apenas nós: palavras e eu. Sem os estímulos visuais dos quadrinhos, sem efeitos sonoros dos desenhos animados. O que eu fosse capaz de conceber, sem ver, seria real. Pensando assim, percebo que a leitura é um ato de fé: confio meu tempo ao autor para que, em troca, ele me ofereça uma fuga temporária da minha vida. Quando “pessoas de tinta” enfrentam os mesmos problemas que eu, mais do que distração, estou sendo agraciado com inspiração.

E não deixe que eu o iluda: eu fui fisgado pelas magias, pelos dragões e pelo quadribol. Mas a saga Harry Potter não é apenas um poço de fertilidade para a mente das crianças (sempre esperei pela minha carta de Hogwarts), mas também é um ensaio sobre a amizade. O que eu sempre achei mais incrível nos livros era o fato dos personagens não serem rasos na construção. Eu via muito de mim no Harry, o garoto deslocado que tenta desesperadamente pertencer a algum lugar, mas não apenas nele. Eu sempre tive minha parte Hermione, que confia plenamente no conhecimento como via para resolver problemas (essa parte cresce a cada dia), ou mesmo no Rony, porque todos temos nossos dias obtusos, em que as únicas preocupações são comer e ficar perto da lareira (os livros de Harry Potter me despertaram o desejo de ter uma casa com lareira em algum momento da vida). Mais importante: cada um do seu jeito, os três se aceitavam pelo que eram.

Harry, Rony e Hermione eram marginalizados pela sociedade: o órfão, o pobretão e a nerd. Nenhum deles trouxe essas questões à tona em sua amizade. Eles se gostavam para além dos traços que os definiam.

A prova de fogo, o motivo pelo qual textos sobre um livro de 20 anos ainda têm apelo, se dá quando os relemos: ano passado, após sair de um emprego onde eu era genuinamente infeliz, me encontrei novamente com Harry Potter, Hermione Granger e Rony Weasley. Fiquei verdadeiramente tocado pela honestidade com que Rowling sempre tratou seus leitores. Cada livro representa um salto qualitativo na complexidade da história. Se ler um livro é um ato de fé, tenho certeza que ela vê o ato de escrever da mesma maneira: ela coloca parte da sua vida naquelas páginas, com a esperança de que os leitores a compreendam. Rowling sempre fugiu do tom pastoral em seus livros. Lê-la é como conversar com ela.

Penso nesta britânica que precisou assinar com as iniciais para que os leitores não soubessem que o livro era escrito por uma mulher, que ouviu “não” de doze editoras e passou um período de sua vida dependendo de programas do governo para alimentar a filha e percebo que Harry Potter não foi apenas uma fuga temporária da minha vida, mas dela também. Eu não fiquei multimilionário, famoso e influente por causa dele, mas aprendi a ler livros, a me importar com pessoas que só existiam na minha imaginação, a respeitar e admirar as diferenças nos outros; passei a ter uma relação com arte que, possivelmente, numa reação em cadeia ao longo dos anos, me colocou aqui no Plano Aberto.

JK Rowling disse ter chorado quando terminou de escrever “As Relíquias da Morte”. Ela está constantemente preenchendo lacunas na história, debatendo seus rumos com leitores pelo Twitter. Sua relação com o livro não é de mera autora. O poder de transformação da obra a atinge tanto quanto a a nós. Essa é a verdadeira magia de Harry Potter.

Harry Potter mudou a vida de J.K. Rowling e a minha também. E tenho certeza que ela está fazendo a mesma coisa que eu nesta segunda-feira: agradecendo.

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