Este artigo vai sair um pouco do formato usual do Plano Aberto. Tomarei a liberdade de trazer o relato de uma experiência que vivi no último fim de semana para, por meio dele, discutir a atual situação das salas de cinema e o futuro delas no Brasil e no mundo diante da ascensão dos serviços de streaming. Pela primeira vez em 23 anos de vida, me arrependi de sair de casa para ver um filme, algo que não havia acontecido nem quando assisti aos pavorosos como Esquadrão Suicida e Os Caça-Noivas. E, como você deve imaginar, o problema não foi exatamente o filme.
Domingo à tarde. Saio para ir ao cinema com minha namorada, assistimos A Bela e a Fera (que você pode ler a crítica do Gustavo aqui). Um dia comum, regado a pipoca, boa companhia e um bom filme, certo? Não. Com exceção do bom filme, o que deveria ser um dia leve e divertido se tornou uma verdadeira prova de resistência, onde fomos sujeitados a suportar desde um cinema desorganizado e desestruturado a um público egoísta, desprovido de qualquer bom senso ou educação. O problema começa na compra da pipoca: de seis caixas visíveis, apenas três funcionavam. O resultado? Filas que ultrapassavam a área do cinema e se prolongavam pelo corredor do shopping, reunindo mais de cinquenta (impacientes) pessoas. Ao chegar à entrada das salas, mais filas. O motivo? Aparentemente, a sala que deveria abrir 19h05 para a sessão de 19h20 só abriu às… 19h20, atrasando a projeção. E aqui vale destacar: os funcionários pouco poderiam fazer se não tinham nem estrutura funcional nem orientação. A culpa é da administração do estabelecimento.
Tudo bem, até aí, suportável. Agora que passamos pelo pior, vamos sentar e curtir o filme, certo? Bem… Não. Pessoas conversando e chutando sua cadeira, casais discutindo e comentando o filme (comentando sobre o personagem gay como se sua existência desafiasse as leis da física), equipe de manutenção do cinema entrando durante a sessão com celulares apontando lanternas para a cara do público, correria de pessoas procurando seus lugares DEPOIS do início da projeção. Uma bagunça não só da vergonhosa organização da rede Cinemark, como também pela absurda falta de respeito e de educação do público. Durante uma das cenas do filme, por exemplo, ao menos cinco pessoas sacaram seus celulares e começaram a FILMAR (!!!) a tela. Detalhe: COM FLASH.
E para fechar a situação com chave de “ouro” (com aspas do tamanho da ponte Rio-Niterói), na saída da sessão, mais uma vez por incompetência e desorganização da rede Cinemark do Shopping Metropolitano, não havia ninguém recolhendo os óculos 3D, o que resultou em uma das cenas mais patéticas que tive o desprazer de presenciar na vida: pessoas constatando a ausência de um funcionário, resolveram acelerar o passo para ir embora levando os óculos, com direito a apressados esbarrando e empurrando outras pessoas enquanto se dirigiam à saída do local.
O curioso é que, por mais absurdos que sejam os relatos deste texto, nenhum deles é novidade para quem convive com o público brasileiro (e aqui me limito a comentar sobre a nossa situação, pois desconheço o ambiente mundo afora). E o mais assustador é constatar que a algazarra que presenciei foi protagonizada não por crianças e adolescentes, mas por adultos (provavelmente da turma dos que se autoproclamam “cidadãos de bem”). E engana-se quem pensa que só é sujeitado a isso quem frequenta sessões comuns. O absurdo é tanto que nem sessões destinadas à jornalistas e críticos de cinema estão isentas da falta de respeito. No mesmo mês em que escrevo esse texto, tive o desprazer de ver uma pessoa sacar o celular na cabine de imprensa de Silêncio, mais recente filme de Martin Scorsese.
No mundo líquido em que vivemos, nada é feito para durar. Tudo é extremamente efêmero. Assistir a um filme deixou de ser uma experiência suficiente. Graças à “cultura dos shoppings”, poucos simplesmente vão ao cinema. Há de se dar uma passadinha na loja pra comprar uma “lembrancinha”, pra depois fazer um “lanche” e fechar o dia com um “filminho”. Aos poucos, vemos a perda não só do hábito de ir ao cinema assistir a um filme, mas também a perda do respeito por parte do espectador que não demonstra qualquer apreço pelo que assiste ou pelas pessoas em volta, só se importa em fazer “selfies” para “postar no insta”. É, guardadas as devidas proporções, o mesmo pensamento do público que vai ao Louvre tirar foto da Monalisa, mas sequer dedica um minuto à apreciação de uma das mais importantes obras de arte da história da civilização humana.
E tal liquidez no pensamento e nas atitudes resulta não só na não absorção da arte (veja, em 2017 as pessoas ainda consideram um filme com montagem paralela confuso), que acaba incompreendida e considerada difícil por quem se acostuma com tudo mastigado, mas também em um público que não foca no que está diante de seus olhos. Como pode, diante de uma tela de 10, 12 metros, uma pessoa sã preferir puxar seu celular e filmar a tela, ao invés de apreciar a beleza do que está diante de seus olhos? Dizer que viu é mais importante do que ver? Dizer que sentiu é mais importante do que sentir?
O combo de fatores cria o cenário perfeito para a ascensão dos serviços de streaming. Antes, a superioridade da experiência de ver o filme no telão com projetor era clara, hoje, nem tanto. Mesmo amando a Netflix, sempre fui do time dos que defendem a importância de ir ao cinema. Afinal, o ambiente de imersão proporcionado pela sala escura e pela tela grande são incomparáveis. Todo o ritual de programar-se para sair de casa e ir ao cinema é parte da “formação” de um cinéfilo e da construção de um hobby, mas é difícil manter tal costume diante da falta de respeito tanto do público quanto de cinemas bagunçados e desestruturados como o mencionado no texto.
E que fique claro: não acho que tal problema de desdém do Cinemark (que chegou a sujeitar funcionários do balcão a exercerem todas as funções possíveis – o mesmo rapaz que pegava a pipoca cuidava do caixa e das máquinas -) e falta de respeito do público sejam exclusividade dos cinemas. Obviamente, são apenas o resultado da era de falta de profissionalismo e de extremo egoísmo e desrespeito em que vivemos. Mas cabe aqui o questionamento: se já temos dificuldade em encontrar sessões legendadas (as pessoas perderam o carinho por obras em sua versão original), quando o fazemos, ainda somos sujeitados a um ambiente extremamente hostil e incômodo, qual o futuro das salas de cinema? Até quando quem realmente gosta de ver filmes vai aturar tais situações sem preferir assistir os lançamentos no conforto de sua casa? Sinceramente, a conjuntura atual sugere que no dia em que pudermos ver um lançamento em casa, os cinemas vão morrer definitivamente. E a culpa é, também, das redes de cinema, que estão mais preocupadas em cobrar 20 reais num saco de pipoca e 30 num ingresso do que em proporcionar conforto e qualidade para seus clientes.
Vida longa à Netflix.