Qualquer um que esteja chegando a este site agora e não saiba o que J.K. Rowling representou na minha formação como pessoa, clique neste link. A leitura é extensa, mas fala por si. Não preciso ser um admirador da obra de um artista para criticar suas posturas pessoais, mas o fato é que sou um admirador da obra de J.K. Rowling. A saga Harry Potter me formou como leitor, basicamente. Não tenho a possibilidade – ou o interesse – de negar a influência destes livros na forma como vi o mundo desabrochar junto ao meu próprio desabrochar. Harry e eu tínhamos a mesma idade quando comecei a ler A Pedra Filosofal em 2001. Num desses alinhamentos cósmicos da vida, tínhamos a mesma idade quando li o último livro em 2007. Medos, anseios, expectativas e valores prezados por ele, Rony Weasley e Hermione Granger também eram meus.
Conforme minha idade avançou, comecei a entender outros personagens. A culpa de Dumbledore por não ter se sacrificado o bastante pela família. A frustração de Sirius pela vida miserável nas sombras. A complexidade de Snape, uma pessoa que tomou diversas decisões erradas, mas não era uma má pessoa e, mesmo odiado durante uma década, se mostrou fundamental no confronto final contra Voldemort. Este, outra bela metáfora sobre o que a rejeição e o abandono fazem a um coração atordoado.
O fim da série de livros deixou um vácuo de representatividade no meu coração, não nego. Existe um oceano de livros esperando para ser navegado, e me considero um desbravador digno até o presente momento: alterno gêneros literários, autores e períodos. Mas mesmo depois de me aventurar com Shakespeare, me apaixonar por Arthur Clarke e desenvolver uma relação de pavor-idolatria com Stephen King (presente na minha descrição de perfil neste site), eu sempre reservei espaços na minha agenda de leituras para voltar à Rua dos Alfeneiros, número 4. Não li muitos livros mais de uma vez (Neil Gaiman é o outro autor que me proporciona este magnetismo inexplicável), mas já perdi as contas de quantas vezes li a frase “O Sr. e a Sra. Dursley; da rua dos Alfeneiros, nº 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado”. E todas as demais que se sucedem.
Também não nego que a volta a este universo com uma série original me empolgou. A história anterior a Harry Potter, provando que aquele mundo ia além do órfão enfrentando seu nêmesis para salvar mais do que mundo ou a si mesmo, mas seus entes queridos (que história sensacional, a propósito). Sempre considerei, e que os fãs xiitas me ataquem à vontade, que Rowling é uma autora do mesmo calibre de J.R.R. Tolkien – cuja obra eu, modestamente, também comecei a analisar de forma mais aprofundada neste ano e pretendo concluir em breve. Penso que, se hoje vivo, Tolkien faria o que Rowling está fazendo: expandindo seu universo ficcional para fora da mídia impressa, contando histórias inéditas explorando o potencial do Cinema.
Sou um grande defensor do primeiro Animais Fantásticos (minha crítica está aqui) precisamente por manter a essência do que é a obra, mas não se limitar a easter eggs, menções a personagens conhecidos ou a uma reprodução da trama original. J.K. Rowling, enquanto roteirista, atualizou seu discurso para tocar num ponto urgente do mundo pós-moderno: a “indústria do preconceito”, alimentada por fundamentalistas religiosos e políticos bravateiros, que ganham com o ódio. Visitou os Estados Unidos da década de 1920 para isso, mas os paralelismos com o século XXI são gritantes e, principalmente, trabalham pela narrativa. É irônico que este tenha sido o princípio do fim.
Em maio de 2016, quando Amber Heard denunciou ter sido vítima de violência doméstica, Depp já estava escalado e gravava Animais Fantásticos. A franquia sempre se propôs a durar cinco filmes, então era de se imaginar que polpudas indenizações por quebra unilateral de contrato estivessem estipuladas. Como Heard acabou ridicularizada por parte do público, acusada de forjar toda a história (provavelmente, ela também escreveu o roteiro e dirigiu o surto de seu então marido no vídeo abaixo), o caso não arranhou a imagem de Johnny Depp.
Talvez tenha sido inocência da minha parte, mas achava a maior injustiça do mundo que outra mulher (J.K. Rowling) fosse punida pela violência doméstica de um homem que desfrutaria de belos milhões de dólares sem precisar trabalhar, enquanto os fãs seriam privados de um projeto tão aguardado. Relativizei a presença de Depp no primeiro filme – foram poucos segundos – e deixei o problema para o futuro.
“O futuro já começou” e o pôster de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald me enojou. Não apenas pela figura de Johnny Depp em destaque. Este semovente, artisticamente morto há mais de uma década (qual o seu último filme realmente bom? Em Busca da Terra do Nunca? Lá se vão quase 14 anos), necessariamente apareceria nos próximos filmes. Mas o que explica a sua aparição no Graham Norton Show, em Londres, no mesmo dia da premiere de Liga da Justiça, também em Londres, onde Amber Heard estaria?
Pessoas como Johnny Depp se alimentam do medo que provocam em outros (curiosamente, penso em uma criatura do universo de Rowling, o bicho-papão). Sua ida a Londres seria um sucesso caso Amber Heard se aterrorizasse e não fosse à premiere de Liga. Algo que, felizmente, não ocorreu. Mas as evidências de que ele está saindo da prática de um crime impunemente e ainda representa uma ameaça para a vítima estão aí para quem quiser ver. E, após a declaração patética de David Yates, diretor de cinco filmes inspirados na obra de J.K. Rowling, percebi que esses filmes não tinham mais lugar para mim. Mas nunca respinguei este ranço em Rowling.
Na verdade, senti compaixão pelo que eu imaginava ser um dilema em sua vida: como compactuar com um homem espancar e ameaçar psicologicamente sua esposa, quando ela própria sofreu desse mal com seu primeiro marido? Como falar e ver o trabalho de uma vida arruinado? O silêncio, eu via, era a solução mais eficiente e dolorosa. Era a melhor forma de não apoiar um agressor, mas também a afastava da própria obra, do seu legado para o mundo através dos tempos.
Vejo como fundamental a plena compreensão do que Rowling diz no comunicado abaixo. Quem lê em inglês, pode pular a parte da tradução (a menos que queira conferir se ela é fiel ao sentido original das palavras da autora).
Quando Johnny Depp foi escalado como Grindelwald, pensei que ele ficaria maravilhoso no papel. Entretanto, enquanto filmávamos sua aparição no primeiro filme, histórias apareceram na imprensa que preocuparam profundamente a mim e a todos os os envolvidos diretos na franquia.
Fãs de Harry Potter têm questões e preocupações legítimas sobre nossa escolha de continuar com Johnny Depp no papel. Como David Yates, diretor de longa data de filmes de Harry Potter, já disse, nós naturalmente consideramos a possibilidade de escolher outro ator. Eu entendo porque alguns estão confusos e irritados sobre o porquê disso não ter acontecido.
A imensa, mutuamente apoiadora comunidade que tem crescido em torno de Harry Potter é uma das maiores alegrias da minha vida. Para mim pessoalmente, a impossibilidade de falar abertamente com os fãs sobre esse problema tem sido difícil, frustrante e algumas vezes doloroso. Entretanto, os acordos que foram feitos para proteger a privacidade de duas pessoas, ambas tendo expressado um desejo de seguir em frente com suas vidas, deve ser respeitado. Baseado em nosso entendimento das circunstâncias, os produtores e eu não estamos apenas confortáveis em manter o elenco original, mas genuinamente felizes de ter Johnny Depp desempenhando um papel de grande importância nos filmes.
Amei ter escrito os dois primeiros roteiros e mal posso esperar que os fãs assistam a “Os Crimes de Grindelwald”. Eu aceito que haverá quem não fique satisfeito com nossa escolha de ator no papel-título. Entretanto, a consciência não é governada por um comitê. Dentro e fora do mundo da ficção, nós todos devemos fazer aquilo que acreditamos ser a coisa certa.
J.K. Rowling. Tradução livre do texto contido na imagem acima.
Em algum momento da vida, ouvi que palavras valem prata, mas o silêncio vale ouro. Talvez eu só tenha entendido plenamente o significado disso hoje. Até ler estes quatro parágrafos, via Rowling como outra vítima de uma complicada rede de proteção jurídica a um agressor de mulheres. Questionava, sim, o quão protegido Depp poderia estar para que uma das mulheres mais ricas e influentes do Ocidente abdicasse de seu poder para jogar luz num problema que, apenas no Brasil, atinge 503 mulheres por hora. A cada repercussão negativa sobre a participação de Depp numa franquia de J.K. Rowling, me perguntava o porquê do silêncio. Preferi acreditar que a autora de uma das minhas séries de livros favoritas não era conivente com um crime do qual ela mesma sofrera antes mesmo de ser famosa, quando facilmente poderia ter sido morta e nunca saberíamos de sua existência.
Confesso que tomei o caminho cômodo de proteger a ídolo, pois via em sua obra (e, consequentemente, nela) uma parte de mim. Uma parte de mim que eu gosto muito não poderia ser construída numa mentira. Fui covarde, algo que muitos fãs de Harry Potter não foram. Essa declaração, antes de um atestado de cumplicidade, tem em cada “entretanto” uma nota ácida de impaciência. J.K. Rowling diz que “tem sido difícil, frustrante e algumas vezes doloroso” não falar sobre a questão, mas imediatamente diz que deve respeitar “os acordos que foram feitos para proteger a privacidade de duas pessoas, ambas tendo expressado um desejo de seguir em frente com suas vidas”.
Ela não nega que Depp tenha agredido Heard (seria difícil argumentar contra imagens), mas baseia sua paz de espírito no acordo mútuo das partes para, no popular, “deixar quieto”. Fico extremamente desconfortável em dizer para uma mulher que agressão não é como pedir uma cerveja fiada na conta de outra pessoa e depois não pagar. Não se “deixa quieto” um caso de violência. Pessoas não dirigem bêbadas – pelo menos a maioria delas – por saberem que, mesmo escapando da polícia, as consequências podem ser devastadoras. Da mesma forma, homens agridem mulheres por saberem que, se escaparem da polícia, as consequências serão nulas. E Rowling deixa claro que, não só tudo está bem agora que as partes “decidiram” seguir em frente, como também se sente “genuinamente feliz” por poder contar com Depp.
É chocante ver quantos filmes Johnny Depp fez desde maio de 2016, quando a denúncia de agressão se tornou pública. Com Os Crimes de Grindelwald, serão cinco, enquanto Heard fez uma ponta em Liga da Justiça e só terá um papel realmente importante em Aquaman, no próximo ano. Imagino pelo quê esta mulher passou nos últimos 18 meses. Na dor física e psicológica que sofreu, primeiro pelas mãos do marido, e depois por todos os que a chamaram de mentirosa e oportunista. No tanto de dignidade ela precisou enterrar para “seguir em frente” e poder voltar a trabalhar. Por fim, penso em como Amber Heard reagiu ao ler esta declaração de J.K. Rowling. Meus sentimentos estão com ela, e apenas com ela neste momento.
Quando nomeei este desabafo de “J.K. Rowling matou um pedaço da minha alma”, me referi à crença de que determinadas pessoas – poucas, é verdade – são capazes de inspirar outras. De que, por mais tenebroso que o destino esteja, existem faróis de esperança e sabedoria brilhando mais forte do que tudo, nos guiando para fora das trevas. Sempre vi Rowling como uma pessoa especial, capaz de dar sentido ao mais absoluto caos, de nos mostrar que o mundo tem jeito.
Ainda acredito que o mundo tem jeito, mas não consigo mais olhar para ninguém e ver um modelo inspirador. Também testemunhei, direta ou indiretamente, muitas mulheres passando pelo que Amber Heard passou para ignorar o que Johnny Depp, J.K. Rowling e a sociedade fizeram com ela. Se queremos mudar o mundo, que mudemos por nossa própria vontade e não por ver os efeitos dessa mudança em outro. Crianças têm heróis, mas franquias bilionárias e “acordos que foram feitos para proteger a privacidade de duas pessoas” estão aí para nos lembrar que este mundo não é para crianças.