Plano Aberto

Jornada Amaldiçoada: Harry Potter e a Câmara Secreta

Ler livros de uma saga em sequência ajuda a mais do que simplesmente conectar detalhes de uma narrativa, mas também a sentir se aquela história foi bem retomada, com os personagens agindo dentro da sua lógica interna. Não é a primeira maratona de Harry Potter que faço, mas a primeira na qual preciso organizar minhas percepções esquematicamente. Então sim, estou redescobrindo aspectos importantes do trabalho de JK Rowling.

Será ou não confirmada como uma constante nos próximos volumes, mas os Dursley representaram as provações iniciais nos dois primeiros livros da série. Harry está em constante processo de amadurecimento e, como nas fases de um game, ele tem a tensão e a recompensa. O ápice da Pedra Filosofal se dá quando ele derrota Voldemort pela segunda vez, a recompensa sendo a festa de fim de ano, quando a Grifinória recupera os pontos que ele perdeu ao ajudar Hagrid e se estabelece como uma figura notável da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Contudo, a volta para a casa na Rua dos Alfeneiros sempre lembra a Harry o que lhe falta (uma família) e o que ele precisa (sair dali).

É cômodo dizer que este princípio revisa os acontecimentos passados de forma concisa e eficiente, preparando o leitor para que a história efetivamente comece. A apresentação de Dobby faz um contraponto entre a forma que Harry é visto por sua família e pela comunidade bruxa.

O tema do preconceito é recorrente na série, mas amadurece com o seu desenrolar: se no primeiro livro Harry sofre com familiares tão avessos à magia que seu comportamento é idêntico ao homofóbico, neste segundo ele começa a perceber que mesmo no mundo mágico ele não é uma unanimidade, e isto vai muito além da sede desmedida de Voldemort por poder:

Ah, se ao menos Harry Potter soubesse! – gemeu Dobby, mais lágrimas escorrendo pela fronha esfarrapada. – Se ele soubesse o que significa para nós, para os humildes, para os escravizados, para nós escória do mundo mágico! Dobby se lembra de como era quando Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado estava no auge dos seus poderes, meu senhor! Nós, elfos domésticos, éramos tratados como vermes, meu senhor! É claro que Dobby ainda é tratado assim, meu senhor – admitiu, enxugando o rosto na fronha. – Mas em geral, meu senhor, a vida melhorou para gente como eu desde que o senhor venceu Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado. Harry Potter sobreviveu, e o poder do Lorde das Trevas foi subjugado, e raiou uma nova alvorada, meu senhor, e Harry Potter brilhou como um farol de esperança para todos nós que achávamos que os dias de trevas nunca terminariam, meu senhor…

O balaço errante

Se Voldemort encontrou seguidores em sua jornada, o medo não foi o principal motivo: comparar o período da História da Magia em que ele foi soberano com a Alemanha do Terceiro Reich é um processo natural. E, com ele, algumas explicações podem ser aplicadas.

Os alemães não aderiram ao nazismo por medo, tampouco. O fizeram porque um líder carismático enalteceu uma camada da sociedade como a raça perfeita e prometeu que, após o expurgo dos indignos, esta classe reinaria absoluta e próspera por mil anos. Em troca, este líder carismático reteria o poder em suas mãos. Os alemães sofriam com a recessão econômica e os bruxos sofriam com a perseguição dos trouxas. Se Hitler colocou a culpa nos judeus, Voldemort colocou-a naqueles que não pertenciam à comunidade mágica. Importante dizer que nenhum dos dois criou um preconceito novo, apenas requentou preconceitos antigos e disse “não tenha vergonha, você está certo”.

Claramente, os Malfoy representam um grupo que acredita piamente na linhagem como fator determinante para o status social:

Sangue ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe, que não tem pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que se acham melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas chamam de sangue puro.

Rony. Sangue ruim e vozes invisíveis

Essa complexa hierarquia, onde bruxos de sangue puro estão acima de bruxos sangues-ruim e criaturas como elfos domésticos, cria um caldeirão (sem trocadilhos) prestes a explodir. Basta uma fagulha. Quando a Segunda Guerra acabou e o Nazismo foi derrubado, uma consequência importante da sua capilaridade na Alemanha se desdobrou: uma parcela tão grande da população estava envolvida com o Reich que foi impossível fazer um expurgo. Muitas pessoas puderam seguir com suas vidas sem nenhum tipo de punição, desde que não mantivessem a conduta ideológica derrotada pelos Aliados. Da mesma forma, quando Voldemort cai na casa dos Potter em Godric’s Hollow, seus seguidores mais fiéis (os Malfoy, por exemplo), alegaram que fizeram o que fizeram por estar sob efeito de magia negra ou por coação. Desta forma, puderam continuar na comunidade bruxa, mantendo viva a palavra do Lord das Trevas.

O livro se passa 11 anos após a queda de Voldemort, período relativamente curto. Os jovens poderiam não ter nascido ou ser muito pequenas quando Voldemort era absoluto, mas seus pais são contemporâneos a ele. É um trauma recente, uma ferida que não está cicatrizada. Quando o herdeiro de Salazar Slytherin volta a atacar os bruxos nascidos trouxas, a harmonia artificial se desfaz e cada grupo se preocupa com a própria sobrevivência.

Será que nenhum professor reparou que os alunos da Sonserina não foram tocados? Não é óbvio que essa coisa toda está vindo da Sonserina? O herdeiro de Slytherin, o monstro da Sonserina, por que é que eles não mandam embora todo o pessoal da Sonserina? – vociferou ele, em meio a acenos de concordância e aplausos.

Lino Jordan. Cornélio Fudge

O passado de Hagrid vem à tona, a autoridade de Dumbledore é posta em xeque e o próprio Harry é apontado como um suspeito. Mais importante do que resolver um problema, as autoridades do status quo estão interessadas em passar a impressão de que o problema está resolvido. JK traz uma trama muito mais madura, exatamente por estabelecer personagens fortemente calcados na realidade. Toda geração tem alguém como Gilderoy Lockhart, tão preocupado em alcançar a fama por grandes feitos que relativiza a importância de efetivamente ter feito alguma coisa e constrói sua fama baseada em mentiras.

Igualzinho à Bel Pesce.

São as nossas escolhas, Harry, que revelam o que realmente somos, muito mais do que as nossas qualidades.

Dumbledore. A recompensa de Dobby

A forma como “A Câmara Secreta” aborda o preconceito está no poder de nossas escolhas. Harry começou a definir quem é quando se recusou a apertar a mão de Draco no Expresso de Hogwarts; Em oposição, Draco vive tentando impressionar seu pai para conseguir aprovação e carinho. Ambos poderiam estar na Sonserina, mas Harry escolheu a Grifinória. Apesar de tantas semelhanças, eles são diametralmente diferentes.

A prova de que todos podemos ser bons. E querer é o primeiro passo para conseguir.

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